São Paulo, terça-feira, 27 de setembro de 2011

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JAIRO MARQUES

Um carrossel para todos


João vai ter a missão de mostrar na TV que sua diferença em relação ao outro acaba na forma física


Um molequinho bem atentado, com cabelos arrepiados e expressão do rosto transpirando uma alegria típica de quem está no mundo para curti-lo ao máximo, será integrante do elenco da regravação brasileira de um dos maiores sucessos das telenovelas mexicanas, "Carrossel", que deve estrear nos próximos meses.
Nada demais, não fosse pelo fato de ele ser cadeirantinho. É, João Lucas Dutra, 8, o ator selecionado pelo diretor Del Rangel, que escondeu o ouro até agora, toca uma cadeirinha de rodas desde que se entende por gente, pois teve de derrubar, na força e na coragem, um raro câncer na medula, que foi embora, mas carregou seus passinhos.
De certo que ele não sabe, nem tem de saber, a importância histórica que seu papel e sua presença na televisão do seu Silvio "Raraê" Santos, o SBT, terá. Mas é latente que João tem o desafio de quebrar uma lógica viciada, a de como a deficiência é mostrada na teledramaturgia: associada ao sofrimento extremo e revoltante, ao lugar-comum do "super-humano" exemplar, como penitência ao "maldoso", ou a uma desgraceira que alguns têm de carregar e passar a trama toda até que ocorra um milagre, nos capítulos finais, para gerar lágrimas de emoção.
Agora, não. O pequeno João, que tem as canelas fiiiinas e deverá aparecer a partir do segundo mês de exibição da novela, vai ser um aluno como outro qualquer da "professorinha Helena". Junta-se ao gordinho, ao magrinho, ao negrinho, à ruivinha, à estrábica, à real mistura de um ambiente escolar. A deficiência será mostrada como sua condição, que deve ser respeitada, entendida, e não como um saco de feijão a ser carregado nas costas.
O menino vai ter a incrível missão de mostrar para crianças e telespectadores que as suas diferenças em relação aos outros acabam em sua forma física. Vai estudar, vai brincar, vai dar uma "sofridinha", afinal todos sofrem, vai mostrar que incluir é a boa do século, é a boa de uma humanidade evoluída.
Eu me lembro de apenas uma vez ter brincado em um carrossel, mesmo tendo fascínio pelo movimento dos cavalinhos que pareciam alados. Não havia brinquedos acessíveis no meu momento infante. Para saciar minha legítima vontade de "cavalgar", minha mãe me pegou no colo, repousou meu corpo sobre a "cela" e foi segurando. Tão bom.
Ver esse gurizinho na TV é garantir um pouco de identidade para milhares de crianças mal-acabadinhas. E elas existem, querem e precisam ser representadas para além das repetidas imagens de derreter o coraçãozinho em leitos de hospitais.
Na minha infância, não tive referências de pessoas iguais a mim na televisão. Dessa forma, eu me sentia sempre como algo exótico, como um erro quase fatal da natureza. Igual ao João Lucas, também "morei" em um hospital por meses angustiosos para a minha família e de muita reza para quem via de fora. Mas nós dois, também, ultrapassamos o momento das dores e fomos dar à nossa existência um sentido de conquistas, de satisfação, de amores e de sabores.
Não vai ser preciso torcer para que o pequeno "melhore", nem ficar com peninha de sua desvantagem esquelética. João será apenas um menino com deficiência que, igual a qualquer outro menino, gosta de carrossel e vai à escola.

jairo.marques@grupofolha.com.br
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