São Paulo, domingo, 28 de março de 2004

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GILBERTO DIMENSTEIN

Não era preconceito. Infelizmente

Durante a campanha eleitoral, quem questionasse a preparação de Lula para assumir a Presidência da República era invariavelmente acusado de preconceituoso, incapaz de aceitar a idéia de que um operário talentoso, inteligente e articulado, mesmo sem educação formal, pudesse dirigir o país.
Embaralhava-se a discussão com argumentos do seguinte tipo: o Brasil sempre foi governado por presidentes com diploma de ensino superior e "nada" foi resolvido.
O clima de desgoverno a que vimos assistindo nas últimas semanas é a prova de que aqueles argumentos sobre a formação de Lula não eram preconceituosos -infelizmente. Certamente esse é um dos fatores, entre vários outros, que explicam as pesquisas divulgadas na sexta-feira sobre as quedas expressivas do prestígio do presidente e de seu governo e que talvez ajudem também a entender uma parcela, ainda que pequena, da difícil situação de Marta Suplicy, como revela hoje a Folha. A crise atinge a imagem de todo o PT.

 

A vantagem educacional de Lula viria de sua familiaridade com a dor dos miseráveis -a chamada "escola da vida". Concentrou-se, então, o debate mais na inegável sensibilidade social do candidato e nos poderes discutíveis da escolaridade formal, simbolizada pelo diploma, que no talento gerencial, no conhecimento da realidade da administração e na intimidade com os principais problemas brasileiros.
Pouco importa mesmo o diploma. Nisso Lula estava e está certíssimo. Se apenas a formação acadêmica funcionasse, as universidades brasileiras não estariam no estado de penúria em que estão.
Educadores acreditam há muito tempo que a experimentação e a vivência com desafios são peças fundamentais no processo de aprendizagem. Sabem que há meios eficazes de apreensão do conhecimento, como a intuição, cujos mistérios são cada vez mais estudados. Intuição e experimentação são coisas que Lula tem de sobra, mas não são suficientes.
Como a nação estava embevecida pelo pensamento mágico -a crença na existência de um salvador da pátria, de alguém que pela vontade resolve tudo o que está aí-, revelou-se o óbvio: para qualquer um, com ou sem diploma, seria um drama pegar o país naquele momento de inflação em alta e de crescimento baixo, com todas as limitações orçamentárias. A tarefa seria ainda mais complexa para alguém que nunca geriu nem mesmo uma prefeitura ou uma secretaria de governo, além de estar cercado de novatos em máquina federal.
 

Abatido José Dirceu, desfez-se o modelo que, supostamente, serviria para conduzir o governo enquanto Lula mantivesse a conexão com a população -graças ao seu extraordinário encanto comunicativo, à sua sincera vontade de mobilizar o país contra a miséria e, acima de tudo, à sua credibilidade.
Digo aqui "supostamente serviria" porque ainda não se sabe se José Dirceu detém mesmo capacidade para ser chefe do Gabinete Civil nesse estilo de governo. É, afinal, a sua primeira experiência desse porte. Dizia-se, antes mesmo do caso Waldomiro Diniz, que ele tinha uma pretensão inversamente proporcional a seus dotes administrativos, o que explicaria a demora na tomada de decisões.
 

Na área econômica, Lula deixou o comando nas mãos de Palocci, que, goste-se ou não, não inova, mas tem coerência, seguindo as linhas deixadas pelo governo anterior. Essa trilha fez com que, se de um lado o crescimento caísse, de outro o país exibisse serenidade. Afastou-se (é esse o ponto mais alto de Lula) o espectro do caos.
Imaginava-se que o forte do governo viesse a ser a área social; afinal, muitos dos melhores programas do país vieram dos municípios que o PT dirigiu. E, aí, ao contrário do que ocorreu na área econômica, a regra foi o tumulto.
Lula não tinha idéia da complexidade da máquina pública e nem sequer se deu ao trabalho de estudar, em profundidade, a intrincada teia de programas sociais do país. Foram desmontados programas que estavam em andamento e, ainda por cima, foram mudadas as equipes acostumadas à burocracia.
Lançaram o programa Fome Zero, reproduzindo, apesar de todas as advertências, erros do passado. Deu no que deu. Lançaram o programa Primeiro Emprego para ajudar os jovens e não se empregou ninguém. Recursos das bolsas para combater o trabalho infantil estão atrasados. Os planos da educação vivem um tumulto de idas e vindas. Apenas agora estão tentando dar racionalidade aos programas, buscando a articulação entre os projetos sociais.
 

Lula é inteligente, é um aprendiz nato, quer acertar (até porque quer se reeleger) e ainda tem tempo de evitar que seu governo acabe antes do tempo. Vai depender, porém, de ter a seu lado equipes experimentadas em máquina pública federal.
Nos debates sobre eventuais mecanismos para tocar o governo, o que se procura, quando se fala nos atributos ideais de um "gerentão", é quase um primeiro-ministro. E talvez seja mesmo uma solução.
 

PS - Por falar em aprendizado, na semana passada, foi apresentado, em São Paulo, um espetáculo que mostrou até onde a educação consegue chegar. Dando seqüência à experiência surgida no Rio de Janeiro, o coreógrafo Ivaldo Bertazzo chamou jovens de escolas públicas e, por dez meses, ensinou-os a dançar, usando ritmos da Índia e do Brasil. Além das aulas de dança, ensinaram aos estudantes várias outras matérias, a fim de aumentar o seu repertório de expressão, entre as quais língua portuguesa e ciências. Se eu tivesse de listar cinco dos melhores projetos que já presenciei, tanto aqui como no exterior, de arte-educação e inclusão social, certamente o espetáculo de Ivaldo estaria entre eles.

E-mail - gdimen@uol.com.br


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