São Paulo, domingo, 28 de março de 2004

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MEIO MILÊNIO DE VIDA

AUREA SOUZA E SILVA, 108
Uma eterna foliona, como toda boa baiana. "Naquele tempo, a garotada brincava à vontade", conta Aurea. "Essa preocupação com o medo de perder a vida, e não em viver, está deixando o mundo triste", diz.
Aurea nasceu no dia 6 de setembro de 1896 e passou a infância em Caravelas, no sul da Bahia. Na juventude, era presença certa nos desfiles de Carnaval. De namorar, nunca foi muita adepta. "Tive uns três ou quatro namorados, mas o meu negócio era outro. Fosse por mim, não teria nem casado."
O casamento aconteceu aos 28 anos, com um vizinho viúvo, dez anos mais velho que Aurea. "Ele tinha quatro filhos, e o mais velho, de 12 anos, chorou, me pedindo para casar com o pai. Ai, não agüentei, né?"
Aurea teve seis filhos, quatro ainda vivos. "A vida é só surpresa. Se pudesse, teria eu ido no lugar os meus filhos, mas o que posso fazer? Fui escolhida para passar por isso", diz.

CONSOLATO LAGANÁ, 100
Terça-feira, meio-dia, Consolato Laganá, 100, enche o cálice de vinho tinto antes de se servir de cuscuz, arroz e frango assado. Ao seu redor, seus filhos, de 76, 73, 71, 69 e 63 anos. O assunto durante o almoço é um só: o ofício de sapateiro. "Sonhei que estava fazendo sapatos", conta ele, que exerceu a profissão dos 18 aos 80 anos.
Fugindo da Primeira Guerra, o italiano chegou ao Brasil em 1918 com o pai. Aos 21, abriu uma loja de consertos no Brás. O sucesso no comércio ajudou a trazer da Itália a mãe e dois irmãos. Em 1939, montou uma de loja de sapatos femininos na praça da República.
Viúvo desde 1993, é o único personagem desta reportagem que tem todos os filhos vivos. O que falta? "Sinto saudade de trabalhar."

CATARINA MARTINZ DOS REIS, 102
No dia combinado para a foto, Catarina Martinz dos Reis foi pega de surpresa. "Queria ter mais tempo para me preparar. Para que pressa?", perguntou ao repórter, sem perder o humor. "Sempre fui muito vaidosa", explica a espanhola que chegou ao Brasil aos dez anos, com mãe, irmã e padrasto.
Casou-se aos 22 e teve três filhos -a primeira morreu com dois anos. "Meu marido não admitia me ver desarrumada." Há 15 anos, Catarina está viúva. "Ele temia morrer primeiro, achava que eu não suportaria sua ausência. Mas, como disse, não tenho pressa", diz. "Todo mundo fica impressionado quando descobre que passei dos cem", brinca. "Não posso reclamar, tenho saúde e minha família."

RAFAELA MERCADANTE DE AZEVEDO, 105
O anel com brasão do "Ouro para o Bem de São Paulo", campanha para angariar donativos e custear os combates da Revolução Constitucionalista de 1932, ninguém sabe onde foi parar. Mas as lembranças do movimento ainda estão bem distintas na memória de Rafaela Mercadante de Azevedo, 105.
Na época, Rafaela era escrivã e morava com marido, morto em 1952, dois casais de enteados e cinco filhas em um casarão do século 18 em Jacareí. Voluntária da Cruz Vermelha, organizou um mutirão de trabalho para produzir as boinas e polainas que aqueceriam os soldados paulistas.
A ex-escrivã, que divide hoje seu tempo na casa das três filhas vivas: Jofely, 78, Maria Azely, 76, e Roseli, 60. Rozênio morreu em 1942, aos 28 anos, e Azênio, em 1957, aos 42 anos. Dos seis irmãos, só ela está viva. "Acho que puxei minha mãe, que morreu com 97, quando eu já tinha 71", conta.

MERCEDES FIGUEIREDO, 105
Se pudesse alterar o passado, Mercedes casaria e teria filhos. Talvez com seu único amor, Manoel, conhecido na adolescência. "Foi num baile no interior de Minas. Eu tinha 13 anos." A paixão era correspondida. "Tem coisas que a gente percebe nos olhares." Durante anos, encontraram-se nos bailes, mas nunca houve nada.
A mãe morreu quando ela tinha sete anos e nove irmãos. O pai, inspetor de ensino itinerante, se casou de novo e teve mais 12. Mercedes largou os estudos para acompanhar o pai em suas visitas.
Hoje, mora em São Paulo com o sobrinho de 73 anos, de quem cuidou quando bebê. Prestes a comemorar 106 anos em maio, Mercedes diz temer a morte. "Não quero dar trabalho."


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