São Paulo, terça-feira, 28 de julho de 2009

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CECILIA GIANNETTI

"P/ Margareth, neste ano de impeachment"


Achei um Drummond num sebo do Flamengo; corri os dedos pelo livro e achei uma folha de papel grampeada

PRIMEIRAMENTE , gostaria de avisá-los de que, apesar de ter dividido um picolé com alguém contaminado e já apresentando (então insondáveis para nós) sintomas de H1N1, estou bem e a influenza não me atingiu.
Animada pelo não contágio, saí pelo bairro e achei um Drummond "diferente" num sebo do Flamengo. Surgiu das prateleiras encarnado em edição pouco mastigada pelas traças, comparado a outros da mesma coleção, que tinham mais buracos que vírgulas. Parece ter sido sempre manuseado com muito cuidado, apesar das anotações hieroglíficas pelas margens em várias páginas e da dedicatória que dá titulo a esta crônica -e me lembra, inevitavelmente, abraço de Lula no senador Collor (esquecemos mesmo aquele impeachment?), entre outros fatos recentes bizarros envolvendo o ex-metalúrgico e os usuais sarnentos -sempre perdoados.
Passei uma das mãos pela capa como se tivesse conseguido afagar, finalmente, o siamês velhíssimo, morador do sebo, que jamais deixa que humanos o toquem com mãos sujas de poeira literária. Corri os dedos pelo livro e, na última página, achei uma folha de papel grampeada. Comprei o livro. O que li primeiro foi a tal folha grampeada.
"Rabisquei um livro que ganhei de presente. Agora sinto alívio. Este livro nunca vai poder circular entre os meus amigos. Meus rabiscos o protegem do roubo-olvidado, aquele que nasce com o empréstimo do livro e morre no esquecimento de quem o toma emprestado."
Era um livro que, já de segunda (terceira? quarta?) mão, havia sido dado de presente a alguém. A dedicatória original legível. Pessoas que amam livros têm o entendimento de que não importa sua procedência: usado, roubado, novo em folha. Era um presente bom que, por um motivo e outro, foi parar num sebo outra vez e, então, veio para a minha mão. A folha confessional grampeada no livro pertencia a outro dono; não à Margareth da dedicatória.
Aquela frase. Pensamos coisas indignas de nota o tempo todo -as mais importantes. E o dono que rabiscou e grampeou no livro coisas "indignas de nota" deu o passo que as torna alvo de interesse do leitor ávido. Transcendeu e escreveu, embora se sentisse também indigno de fazê-lo. A ordem de grandeza diz que dignas de nota são as mazelas de jornal e revistas (atualmente, gripe suína e Sarney nas capas), miseráveis demais se levarmos em conta a cara triste de quem as lê no metrô.
Já em casa, com minha nova aquisição feita no sebo, dei por falta de um papel que me atraísse a caneta e alguma ideia diversa à explosão de um sentimento de desamparo e revolta pelos recentes comentários do comandante desprovido de filtro moral, mental ou "de boca" mesmo, ao defender os indefensáveis com comentários infelizes. Quis escrever uma ode romântica aos livros imundos que coleciono, rabiscados, alguns repletos de confidências. Quis fincar a tinta com a paixão desprendida que testemunho na página grampeada no livro. Não rolou, "No can do", como dizem os gringos, que deixaram o Bush à solta, mas andam por lá a prender rabinos que traficavam órgãos humanos, entre outros delitos. Quando dei por mim, já estava à frente do computador resmungando sobre politicagens, pizzaiolos, patriarcalismos, parasitismos. Feliz daquele autor-leitor que pingou nas páginas de um livro já escrito sua literatura tímida, cujo maior remorso e cuja maior preocupação eram a saúde de um exemplar de Drummond que havia transformado em seu próprio caderno de desejos. Deixo aqui rabiscado, então, um desejo meu: Fora, homem. Fora.


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