São Paulo, domingo, 29 de junho de 2008

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GILBERTO DIMENSTEIN

Educadores, bêbados e assassinos


Há inúmeros estudos que mostram que considerável parcela dos crimes está associada ao consumo de álcool

PROJEÇÕES OFICIAIS INDICAM que, até o final do ano, a cidade de São Paulo produzirá uma situação até pouco tempo atrás (pouquíssimo, aliás) inimaginável. Teremos mais mortes violentas provocadas pelo trânsito do que por assassinos. Combinam-se uma ótima e uma péssima notícia.
Documentos produzidos por técnicos especialistas em segurança estimam que a cidade vá ter uma redução de aproximadamente 80% na taxa de assassinatos, seguindo tendência iniciada em 1999. A projeção é feita com base na verificação do número de ocorrências deste primeiro semestre, sustentando a aposta de que, até o final do ano, serão 1.600 as vítimas de assassinato.
No caminho inverso, o número de mortes no trânsito não pára de crescer e, se permanecer a tendência dos primeiros meses do ano, haverá em torno de 2.000 mortos até o fim de 2008.
Os motoristas passam a ser, portanto, os maiores responsáveis pelas mortes violentas e essa situação, por si só, constitui um dos principais argumentos no debate sobre o esforço de implantação de uma norma já apelidada de "lei seca" -para que ninguém dirija alcoolizado.
Ocorre que não se está proibindo ninguém de beber -apenas se pede às pessoas que, se beberem, não dirijam.

 

O próprio apelido de "lei seca" já revela a impopularidade da medida, que começou a ser aplicada nesta semana, em meio à opinião pública. Para muita gente, esse tipo de limitação ao prazer é tramado por um grupo de "chatos", incapaz de apreciar os prazeres da vida.
Esse é mais um ingrediente para tentar entender porque é tão difícil brigar com a indústria da bebida, em especial a da cerveja, com suas bilionárias campanhas publicitárias, que habilmente associam álcool com jovialidade, felicidade e sensualidade. Usam-se ídolos populares, como Zeca Pagodinho e Ivete Sangalo, para vender essa ligação entre bebida e felicidade.
 

A batalha contra o cigarro é dura, mas menos difícil. Enquanto certa dose de álcool -especificamente o vinho tinto- pode fazer bem para a saúde, o fumo, comprovadamente, provoca o câncer. Nos últimos tempos, divulgaram-se pesquisas que revelaram que o cigarro aumenta o risco de impotência sexual e até o de calvície -para muita gente, por incrível que pareça, ser "broxa" e careca é algo tão ou mais grave do que desenvolver um tumor maligno.
Os pais se incomodam muito mais quando seus filhos fumam maconha do que quando tomam um "porre" -e isso é verdade mesmo entre os muitos deles que sabem que, estatisticamente, o principal motivo de internações psiquiátricas no Brasil é a bebida.
Há estudos e mais estudos que demonstram que considerável parcela dos crimes está associada ao consumo de álcool, fator responsável por atropelamentos, homicídios e violência doméstica, entre outros delitos.
É claro que nada disso deve diminuir a preocupação com as drogas ilícitas. Na semana passada, a ONU divulgou um relatório em que mostra o Brasil na liderança do aumento de consumo de drogas como maconha, cocaína e ecstasy. Segundo o relatório, o país tem hoje 850 mil consumidores de cocaína.
Apesar de também envolver verbas bilionárias, a proposta do Ministério da Saúde, lançada na semana passada, de limitar a propaganda de alimentos que estimulem a obesidade infantil, conta com apoio considerável da população, a começar das mães e dos pais das crianças.
 

A aceitação cultural explica a permissividade em relação ao álcool e acaba favorecendo tramas clandestinas contra a saúde pública, defendida pelos "chatos", sempre munidos de suas aborrecidas estatísticas. Essa é uma das razões, entre outras inconfessáveis, que ajudam a indústria da cerveja a mobilizar políticos e a impedir restrições à sua propaganda. Isso mesmo que qualquer indivíduo minimamente letrado saiba que a cerveja, por seu teor de álcool, pode ser considerada uma droga psicoativa, capaz de alterar os estados mentais.
 

O que vemos agora é uma indignação generalizada, especialmente dos jovens, com a ação da polícia -o que, aos seus olhos, torna a bebida ainda mais transgressoramente sedutora. Imaginam-se resistindo contra a repressão. Acabam estimulados (com certa razão), no ataque à lei, por notícias de que foi punido quem comeu dois bombons de licor ou usou anti-séptico bucal; excesso no rigor pode ter o efeito colateral de ausência de punição.
Há uma desigual guerra de comunicação, como se, de um lado, estivesse o espírito jovial e, de outro, os educadores "chatos". A julgar pelo número de mortes associadas ao álcool, como mostra o trânsito de São Paulo, os "chatos" estão perdendo a batalha para a alegria sóbria de quem está faturando com a irresponsabilidade social.
 

PS- Se houvesse um prêmio para a irresponsabilidade social, o sindicato dos professores da rede estadual de São Paulo seria um forte concorrente. Está conseguindo manter uma greve nada sóbria contra medidas que reduzem (levemente, diga-se) a rotatividade dos professores nas escolas, uma das causas da baixa qualidade de ensino. Além disso, posiciona-se contrariamente às medidas que tentam reduzir o absenteísmo e que premiam as escolas pelo seu desempenho.
Certamente o sindicato não ganharia o prêmio, por exemplo, daqueles que usam a inteligência para associar a bebida alcoólica à juventude nem dos governantes que deixaram a educação chegar a condições tão precárias, mas não faria tão feio assim na disputa.

gdimen@uol.com.br


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