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São Paulo, sábado, 29 de novembro de 2003

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LETRAS JURÍDICAS

Problemas nas relações de pais e filhos

WALTER CENEVIVA
COLUNISTA DA FOLHA

Verdi construiu a trama central da ópera "Rigoletto" (1851) a contar da relação entre um pai preocupado com o futuro e a honra de Gilda, sua linda filha, em face de perigos que ele conhecia bem, deformado física e moralmente, pois, bufão na corte do Duque de Mântua, era seu cúmplice constante em conquistas lícitas e ilícitas. O destino pregou-lhe uma peça: Gilda se encantou, sem contar ao pai, com um rapaz que lhe disse ser o poeta Gualtier Maldè, apaixonado por ela. Em verdade era o próprio duque, conquistador inveterado e imoral. Gilda engana o pai, mente-lhe sobre seu enlevo e termina morrendo, sacrificando-se em lugar do amante, o qual Rigoletto queria matar, vingando-se.
Na atualidade, o drama da relação entre pais e filhos parece mais complicado do que há pouco mais de 150 anos, quando surgiu o "Rigoletto". Os fatos sociais (a urbanização abrupta, com a violência consequente, o engajamento da mulher no mercado de trabalho, os meios de comunicação instantânea, o crescimento populacional), científicos (a pílula, os antibióticos e os remédios que estendem a vida, os veículos de transporte de massa ou individuais) e tantos outros distanciaram os filhos de suas casas, substituída a educação no lar pela coletivização das escolas.
O artigo 227 da Constituição impõe à família, à sociedade e ao Estado deveres que nenhum deles, na média, cumpre integralmente. Tais deveres consistem em assegurar "à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão". Proponho que o leitor releia o trecho entre aspas para assegurar-se da extensão e da profundidade dos deveres impostos pela Carta Magna. Verifique, guiado pelo conhecimento de sua realidade social, as dificuldades e a extensão do papel de cada um dos responsáveis (família, sociedade, Estado) e também até onde cumprem suas tarefas.
Nesse contexto social, muitos pais hesitam em ser firmes ante o argumento de que outros pais são menos rigorosos. A dosagem varia, criando embaraços para aqueles cuja formação lhes impõe mais severidade. Nenhum critério uniforme é possível, mas o elemento básico é o diálogo direto, amplo, esclarecedor, principalmente no seio da família, lugar próprio para a rediscussão dos influxos recebidos fora de casa. Vê-se, logo, que o núcleo da questão não está no Direito, em cuja farmácia faltam remédios para questões tão complexas. Nesse campo, os Von Richthofen e os Friedenbach são iguais entre si e iguais aos Silva e aos Pereira enquanto pais e mães mergulhados num mundo em transformação, de posições instáveis, em fase de decantação, perturbadoras da visão individual e coletiva. Por isso mesmo envolvidos em tragédias difíceis de aceitar.
O leitor poderá perguntar: "Então, não há o que fazer?".
Há sim. A solução coletiva virá da atuação de cada um em seu próprio núcleo, segundo seus valores essenciais, divididos ampla e limpamente com todos os integrantes do grupo para a construção da paz comum.


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