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MOACYR SCLIAR
O Senhor dos Anéis
Já deveria ter mandado arrumar a aliança. Mas sempre fora assim, um
homem displicente
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O neozelandês Aleki Taumoepeau tornou-se o verdadeiro "Senhor dos Anéis"
após recuperar o anel de casamento do
fundo do mar, no porto de Wellington
(Nova Zelândia). Aleki, que estava casado havia apenas três meses, prometeu à
mulher, Rachel, que recuperaria a aliança. Marcou o lugar com uma âncora, anotou as coordenadas do GPS, e, com uma
persistência que faz jus ao sobrenome
("Guerreiro das Ondas", no idioma local), voltou ao local três meses depois.
Falhou nas primeiras tentativas, mas depois conseguiu seu objetivo. Folha Online
A PERDA da aliança poderia ter
sido considerada um acidente, como tantos que acontecem. Estava um pouco folgada e várias vezes já tinha caído do anular
dele. Mas a jovem mulher pensava
de outra maneira. Acidentes não
existem, disse, amargurada; atrás de
cada acidente, de cada descuido,
existe uma intenção oculta, mesmo
que inconsciente. Em outras palavras, achava que o marido estava
querendo se separar e que estava sinalizando neste sentido.
Ele se sentiu terrivelmente mal
com aquela acusação, mesmo porque no fundo considerava-se culpado -de relaxamento, no mínimo.
Já deveria ter mandado arrumar
a aliança. Mas sempre fora assim,
um homem displicente, ainda que
cuca fresca; ia adiando as coisas
que precisava fazer até que algum
problema acontecia. E o problema
agora era sério.
Decidiu se reabilitar: encontraria
a aliança. Tarefa muito difícil, comparada com a qual encontrar uma
agulha no palheiro era brincadeira
de criança. Mas não desistiria. Tinha
marcado o local com uma âncora;
além disso, a profundidade não era
tão grande, três metros, a água ali
era relativamente límpida. Mais que
isso, era bom mergulhador, e, se fosse o caso, poderia usar equipamento
especial para ficar bastante tempo
explorando o fundo.
Comunicou à mulher a decisão.
Ela nada disse, mas ele sentiu que o
resultado do empreendimento (porque era de fato um empreendimento) condicionaria o destino de ambos. E assim, no dia seguinte começou a busca, mergulhando no local
em que estava a âncora.
Era muito mais difícil do que pensava. O anel provavelmente estava
coberto pela areia, e isso significava
que teria de explorar uma área de
vários metros quadrados. Foi o que
fez. De vez em quando, seus dedos
tocavam um objeto metálico, o que
fazia seu coração bater mais forte;
mas não, não era o anel, era uma
chave, era uma moeda. E assim ele
voltava, dia após dia. Finalmente,
três meses depois de iniciada a busca, ele -com enorme emoção- encontrou a aliança.
Alegre, triunfante, correu para casa. Entrou, fez uma reverência diante da mulher e disse:
-Senhora princesa, aqui está a
nossa aliança.
Ela pegou o anel, examinou-o e
disse, mal contendo a mágoa:
-Não. Esse anel nada tem a ver
conosco.
De fato: como a aliança perdida,
aquela tinha um nome gravado, o
nome de uma mulher. Mas não era o
nome da mulher dele. Era de uma
outra, uma tal de Liza. Por incrível
que pudesse parecer, ele encontrara
outra aliança.
Continuam casados, mas já não é a
mesma coisa. Porque ele mudou.
Volta e meia fica olhando o anel. E
sabe que um dia, movido por um irresistível impulso, irá procurar uma
moça chamada Lisa, cujo nome está
num anel que o destino colocou no
fundo do mar.
MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto
de ficção baseado em notícias publicadas na Folha.
moacyr.scliar@uol.com.br
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