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Bichos

JAIME SPITZCOVSKY - jaimespitz@uol.com.br

Scanners de humanos

Os cachorros desenvolveram exímia capacidade de observar e traduzir, para seu idioma, características humanas

Imaginei um dispositivo revolucionário, com incontáveis aplicações. A impressora acoplada ao dorso do cão produziria, de imediato, sucinto relatório sobre o ser humano escaneado por nosso amigo de quatro patas. Por meio de habilidades caninas, poderíamos levantar, com impressionante velocidade e precisão, dados sobre o perfil psicológico, o humor e a saúde do alvo em estudo.

Os cachorros desenvolveram, em sua milenar tarefa de construir o convívio com uma espécie diferente, exímia capacidade de observar e traduzir, para seu idioma, características humanas. "Veja um collie trabalhar com um pastor e você ficará surpreso por quão pequeno pode ser o gesto que a pessoa faz para se comunicar com seu cão", indica Alexandra Horowitz, autora do livro "A Cabeça do Cachorro".

Presenciei pela primeira vez a fascinante interação cão-homem no pastoreio em um cenário exótico: ilhas Malvinas. Corria o ano de 1990, e integrei um grupo de jornalistas convidado pelo governo britânico a visitar o arquipélago dono de cicatrizes recentes da guerra com a Argentina, em 1982. Apesar da agenda política, houve momentos bucólicos, com visitas a fazendas de ovelhas e colônias de pinguins.

Falando de caninos, temos em casa tomógrafos de nossas reações, capazes de avaliar sutis alterações de humor, odor ou gestuais. Um leve arquear de sobrancelhas já conta. Movimentação de olhos, por exemplo, também entra no escaneamento.

Com olfato e audição incrivelmente apurados e com uma visão que, embora menos sofisticada do que a nossa, participa com relevância na montagem do radar, cães despontam como notórios especialistas em homo sapiens. E sou testemunha disso.

Recentemente, dois vira-latas me adotaram. Não fiz grandes esforços para incorporá-los à matilha, mas eles deram sinais claros de que haviam escolhido aqueles humanos e o seu entorno para viver. E, no caso de Meggy, também para parir.

Minha filha e eu, alguns meses atrás, nos preparávamos para deixar o sítio quando avistamos uma cadelinha sob o carro do caseiro. "Vamos ficar com ela, né?", indagou Silvia. Tentando incutir doses de racionalidade numa área em que costumo fluir com emoção, respondi: "Vamos esperar, talvez esteja lá só para se proteger do sol". Sabíamos que ela circulava pela vizinhança havia dias.

Meggy, após rastejar até a improvisada proteção automobilística, nunca mais nos deixou. Logo percebemos sua prenhez. A cadela encontrou abrigo e assistência veterinária para o parto.

Meses depois, outro vira-lata bateu à porta. Permaneceu dias na entrada do sítio. Fatalmente percebera se tratar de terreno amigo. Com medo da superpopulação e com a constatação de que o cão carregava uma coleira, pedi ao caseiro que tentasse ajudá-lo a reencontrar o caminho de uma eventual casa. Foi em vão. Acompanhado a vagar pelas cercanias, o novo amigo insistia em voltar ao portão. Havia escaneado os humanos e não errou na análise. Em minutos, Lucky se integrava à nossa matilha.

AMANHÃ EM COTIDIANO
Francisco Daudt

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