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Jairo Marques

Mudanças

Chegar requer energia para reconstruir, ter de provar, de novo, suas competências e suas habilidades

UM DOS programinhas de TV a que mais tenho dado audiência ultimamente é o "Chegadas e Partidas", da Astrid Fontenelle, em um canal fechado. Poucas fórmulas conseguem sintetizar com tamanha emoção os efeitos das mudanças da vida.

A ideia da produção é relativamente simples: apanhar depoimentos de pessoas que estão indo viajar a passeio, rumando para uma nova vida, abandonando uma realidade ou chegando de volta para casa, para a renovação de uma esperança, para matar saudades.

O palco de tão ricos acontecimentos é o Aeroporto Internacional de Guarulhos, em São Paulo, um dos mais movimentados do mundo e onde as mudanças podem ser levadas tanto com a roupa do corpo como em malas sofisticadas, sacolas de supermercado, caixas enormes.

Mas o que me chama mesmo a atenção é que por trás de cada chegada ou partida há um turbilhão de sentimentos envolvidos, de verdades do fundo do coração reveladas diante dos momentos de ruptura da tranquilidade do "levar a vida".

Partir implica deixar na lembrança a comodidade daquele lugar gostoso de onde se via o movimento da padaria da esquina, deixar confortáveis cumprimentos daqueles que se viam todos os dias, deixar a segurança do reconhecimento da pontualidade ou das desculpas pelo atraso. Partir também pode ser abandonar o aborrecimento, a mesmice, a dor.

Chegar requer energia para reconstruir, para encarar novas feições diante de suas atitudes. Requer ter de provar, de novo, suas competências e suas habilidades. Requer arrumar a casa, desfazer uma mala de lembranças e de roupa suja.

Quem chega tem, necessariamente, que trazer novidades, alguma esperança e disposição. Tem que procurar uma fresta nova em uma nova janela para ver o movimento da rua.

Na vida das pessoas com deficiência, por mais que a regra da "autoajuda" diga que mudar, que chegar e partir, "é sempre para melhor", o processo de rearranjar o dia a dia é cabuloso em primeira instância.

É, mais uma vez, demonstrar que você pode até babar no teclado, mas que fará com competência o relatório, que pode não enxergar nada do que está no extrato, mas que sabe fazer conta direitinho, que não ouviu nada do que o chefe disse, mas leu as instruções e consegue dar cabo das ordens.

Provar que ser down não é ser bobo, ser cadeirante não é ser imóvel, ser autista não é ser lunático.

Mudar de lugar os móveis da casa refresca o ambiente, mas desorganiza os livros. Mudar de casa pode ser a alegria de ir para um aconchego mais gostoso, mas pode guardar um momento dolorido de rearranjo da família pela perda de um companheiro.

Quando a gente muda de namorada, demora um tempo para se habituar com o recente encontro de lábios; quando a gente muda de estilo, teme uma gongada e um grito de "seu brega" na rua; quando a gente muda de lugar no ônibus, está sempre correndo o risco de sentir saudades do sujeito que apenas roncava apoiado em nosso ombro.

Lidar com mudanças expõe a alma aos medos ocultados pelo comodismo ao mesmo tempo que puxa de dentro de nós um instinto fervoroso, o de que é preciso seguir adiante.

jairo.marques@grupofolha.com.br

AMANHÃ EM COTIDIANO
Antonio Prata

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