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Marcos Augusto Gonçalves

Titãs

Reencontro da banda na noite de sábado foi uma divertida viagem pela São Paulo da década de 1980

"Eu não gosto de padre/ eu não gosto de madre/ eu não gosto de frei/ eu não gosto de bispo/ eu não gosto de Cristo/ eu não digo amém."

Nando Reis vai desfiando sua herética "Igreja" no palco do Espaço das Américas, na Barra Funda. A seu lado, Arnaldo Antunes, Branco Mello, Sergio Britto, Paulo Miklos, Charles Gavin e Tony Belotto. Os Titãs estão de volta por uma noite. Numa vertiginosa viagem pelo tempo vou e volto daquela São Paulo da década de 1980, quando vi os primeiros shows e acompanhei de perto o estouro da banda.

Lembro de Branco Mello no apartamento do Conjunto Nacional, Arnaldo na esquina da Paulista com a Consolação, Britto e todos eles nos salões intermináveis patrocinados pelo multiartista Fernando Zarif -que nos deixou, mas estava lá anteontem, com Marcelo Fromer. Como também estavam os que no início não existiam: a numerosa prole formada por crianças, moças e rapazotes. Família. Vamos lá! Pose para fotos. Todos juntos. Espera! Falta alguém. Chegou. Sorriam!

Os Titãs fazem parte de uma geração que cresceu nos últimos anos da ditadura militar. Jovens demais para saudosismos, não se alinhavam nem com o chororô nem com a cultura edificante de esquerda. Tampouco cultivavam a nostalgia 68.

Naquele momento, o futuro já parecia mais interessante do que o passado. Não por acaso o rock foi a manifestação musical privilegiada daquela rapaziada. Eram politizados, mas de um modo diferente, sem o ranço que se acumulava em boa parte da produção artística da época. Eram mais anárquicos, internacionalistas e individualistas. Não se adaptavam. Não diziam amém.

É verdade que "Inútil" e "Nós Vamos Invadir sua Praia", do Ultraje a Rigor, foram os hinos daquela São Paulo que se tornava o epicentro da redemocratização, mas poucos grupos, como os Titãs, expressaram tão bem o espírito da época. Muitos, é claro, não gostavam, mas em sua variedade (eram oito!) eles conseguiram levar para o palco as inquietações e tendências que estavam no ar.

Se a embalagem no início era new wave, também pulsava a veia punk, a pegada hard-core, o interesse pelas artes, pelo vídeo e pela performance, além de uma poética característica, com marcas construtivistas, um pouco na tradição das vanguardas paulistas. É conhecida a afinidade de Arnaldo com a poesia de Augusto de Campos, mas nem todos devem saber que o erudito Haroldo, do trio da poesia concreta, certa vez embarcou no ônibus com a banda para um show no interior.

Cheguei a São Paulo em 1984, saindo do Rio, para trabalhar nesta Folha. Era editor da Ilustrada quando os Titãs lançaram o primeiro LP. O beatlemaníaco André Singer, hoje cientista político talentoso e respeitado, fez a crítica do disco de estreia, que tinha "Sonífera Ilha", o primeiro sucesso. Depois veio "Televisão" e, a seguir, o definitivo "Cabeça Dinossauro". Com um desenho de Leonardo da Vinci na capa, foi o trabalho mais marcante da banda e o que melhor traduziu sua estética.

Na noite de sábado, com a presença de amigos dinossauros e seus filhotes, revisitamos essa história. Plateia animada e som na caixa. Foram 13 músicas com a formação atual e mais 13 com os integrantes originais, Charles, Nando e Arnaldo. Muitos e muitos hits, entre eles "Polícia" e a citada "Igreja", duas odes à insubordinação e à liberdade, que me sacodem. Ok, é apenas rock'n'roll. Mas eu gosto.

marcos.augusto@grupofolha.com.br

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