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OPINIÃO ECONÔMICA
Memória da desigualdade
RUBENS RICUPERO
O que diria da Alca Hipólito
José da Costa, cujos restos foram trasladados a Brasília, após
178 anos de descanso na paz bucólica da igrejinha de Hurley-on-Thames, perto de Oxford? A hipótese não é disparatada, pois foi ele
quem fixou para a imprensa brasileira, no "Correio Braziliense"
de quase dois séculos atrás, o padrão do que deveria ser a informação e a análise crítica de negociações comerciais decisivas para
o destino nacional.
Logo após a chegada ao Rio de
Janeiro do príncipe regente dom
João, Hipólito acompanharia de
Londres cada passo dos ingleses
para impor à parasitária corte
portuguesa os tratados de Comércio e Navegação e de Amizade e
Aliança, de 1810, que preparavam
a transferência ao futuro Brasil
independente dos laços de subordinação que a Inglaterra instituíra havia séculos com Portugal.
Já na partida de Lisboa, o arrogante embaixador britânico
Strangford creditava-se o mérito
pela mudança da corte, escrevendo ao primeiro-ministro Canning: "Dei à Inglaterra o direito
de estabelecer com os Brasis (sic)
a Relação de Soberano e Súbito e
a exigir que a Obediência seja paga como o Preço da Proteção"
(com maiúsculas, como na grafia
do inglês de época).
Essa relação, descrita com crueza por um diplomata inglês inimigo de eufemismos, vinha do desesperado desejo de Portugal de
assegurar a independência contra
a Espanha e a França, por meio
da proteção britânica adquirida
com as concessões dos acordos de
1642, 54 e 61, coroadas pelo Tratado de Methuen, de 1703.
Conforme observaria Fernando
Novais, sempre que obrigado a escolher entre a Espanha/França
-que lhe garantiriam o território europeu, mas exporiam suas
colônias aos ataques ingleses-ou
a Inglaterra -cuja esquadra era
a única capaz de defender-lhe as
possessões ultramarinas-, Portugal acabou por decidir-se pela
última. A importância vital das
colônias culmina no episódio de
1807, quando dom João abandona os anéis (do território metropolitano) para conservar os dedos
(o Brasil e o Império).
É justamente essa a base da argumentação que usará Hipólito
na crítica das negociações. Ele
mostra a seus leitores que, sendo
completamente diferente da de
Portugal a posição do Brasil em
relação à Inglaterra, os velhos tratados anglo-portugueses não deveriam servir de precedente. Isolado geograficamente, o Brasil
não necessitava da proteção naval inglesa contra a cobiça napoleônica. Do ponto de vista econômico, era impossível prever como
se desenvolveriam a agricultura
ou a indústria no Brasil ou se os
Estados Unidos não ofereceriam
alternativa comercial superior à
inglesa.
Prevaleceram, não obstante, os
interesses europeus da corte sobre
as aspirações brasileiras, o que
era por si só razão bastante a justificar a independência, que veio
mais tarde, já hipotecada pelas
excessivas concessões de 1810.
Do Tratado de Comércio, escreveu o duque de Palmela ter sido
"na forma e na substância o mais
lesivo e o mais desigual que jamais se contraiu entre duas nações independentes". Dois pontos
bastam como ilustração. As mercadorias inglesas pagariam no
Brasil tarifa de 15%, enquanto as
da metrópole portuguesa seriam
oneradas com 16%! O tratado
pretendia estabelecer "sistema liberal de comércio fundado na base da reciprocidade". No entanto
ficava proibida a exportação aos
mercados da Inglaterra de açúcar, café e outros produtos similares aos das suas colônias, admitindo-se, todavia, o trânsito e
reexportação desses artigos, que
asseguravam carga de retorno
aos navios e polpudas comissões
aos negociantes ingleses. O resultado foi o inelutável declínio do
comércio e da navegação lusitanas com o Brasil. Oliveira Lima
registra que em 1805 tinham entrado no Rio de Janeiro 810 navios portugueses, número que
passa em 1810 a 1.214. Dez anos
depois, em 1820, aportavam de
Lisboa apenas 57 embarcações,
das quais só 28 de 3 mastros!
O outro exemplo encontra-se no
artigo 10 do Tratado de Comércio, pelo qual se transplantava ao
Brasil a instituição do Juiz Conservador da Nação Inglesa, isto é,
a jurisdição privilegiada, pela
qual seriam julgados todos os súditos britânicos, mais tarde imposta à China, nas condições que
se conhecem. Em compensação a
essa extraterritorialidade, dizia o
artigo com involuntária ironia
que bastaria continuar a observar escrupulosamente, nos domínios do rei de Grã-Bretanha, as
leis de proteção às pessoas e propriedades de que os vassalos portugueses se beneficiavam (em comum com todos os estrangeiros)
"pela reconhecida equidade da
jurisprudência britânica e pela
singular excelência da sua Constituição"... O Juízo Conservador
só viria a ser abolido em 1832 pela
Regência, e isso mesmo sob protestos da Inglaterra.
Perdoe-me, leitor, se o aborreço
ao capinar do mato do esquecimento algumas velharias úteis
para recordar-nos de onde viemos. Não foi fácil libertar-nos
dessa herança. Como preço da
mediação para o reconhecimento
da independência, a Inglaterra
obteria a prorrogação desses privilégios até sua expiração, em novembro de 1844. Sem falar dos
gravíssimos incidentes relativos
ao tráfico de escravos, as concessões comerciais, estendidas depois
a outras potências, tiveram efeitos econômicos nefastos e duradouros. Não só liquidaram as oficinas e indústrias que começavam a florescer com o fim do repressivo monopólio lusitano.
Amarraram, além disso, as mãos
das autoridades financeiras, que
não podiam usar as tarifas de importação, principal fonte de receita fiscal da época, a fim de financiar o desenvolvimento do país.
Os estadistas do Império lutaram
com denodo para livrar-se dessas
peias coloniais. Quando finalmente o conseguiram, erigiram,
em princípio, permanente a recusa de celebrar acordos de comércio com países mais poderosos.
Foi preciso esperar a república
para voltar a firmar acordos dessa natureza, o primeiro aliás com
os EUA, em 1891, retomando prática da qual a proposta da Alca é
a mais acabada expressão, ao
menos na extrema assimetria dos
parceiros. Quase há 200 anos, Hipólito advertia que um tratado
com a Grã-Bretanha era tarefa
delicada e perigosa para o Brasil.
A advertência continua válida
em relação aos herdeiros da posição dominante da Inglaterra. Cabe à imprensa, com os meios incomparavelmente superiores de
que dispõe, e aos negociadores,
com firmeza e competência, assegurar que, dessa vez, a advertência conduza a resultado equilibrado.
Rubens Ricupero, 64, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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