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LUÍS NASSIF
O meu amigo Tio
Há dois gozos profundos nos
críticos, especialmente nos
de música: demolir reputações firmadas ou consagrar talentos desconhecidos. Quando se descobre
qualquer um desses temas, um
ângulo depreciativo do consagrado, uma virtude extraordinária
no desconhecido, é como se aquela descoberta se tornasse um filho
dileto de pai babão. E toca a exagerar nos adjetivos, tanto negativos quanto positivos.
É por isso que fiquei um tanto
preocupado quando, no início de
1980, o notável crítico e produtor
musical Armando Aflalo, dono
da maior coleção de jazz do país,
convidou-me a escrever o encarte
e a contracapa do primeiro LP do
pianista Laércio de Freitas, o Tio.
Explicou-me que a música mais
conhecida do Tio era "Capim
Gordura", mas que ele tinha produção de choros de vanguarda.
Na ocasião, uma vez por semana eu exercitava uma crítica musical no "Jornal da Tarde", onde
procurava analisar os discos mais
sob a ótica de músico do que o do
padrão em voga na crítica da
época -do "in" e "out" que colocava toda a música no filtro do
que a classe média intelectualizada considerava de bom ou de
mau gosto.
A preocupação não foi tanto pelo convite, que muito me honrou,
mas pelo que senti quando fui ouvir o Tio no Estúdio Eldorado. É
um negro alto, magro, elegantíssimo, com barbas de Machado de
Assis, um modo de falar, de andar
lento, até a hora em que sentava
ao piano. A postura continuava
elegante, estudada, mas os acordes que dali jorravam eram impressionantes. No acompanhamento, o grande Xixa -maior
cavaquinho de São Paulo, recentemente falecido- suava em bicas para entender aquela harmonia. Mais versado nas sutilezas do
jazz, o grande guitarrista Heraldo
do Monte acompanhava, mas
com os dois olhos cravados no
Tio, para não perder a sequência.
O LP chamou-se "Ao Amigo Esmê", o cavaquinho Esmeraldino
que conheci no Festival do Choro
promovido pela TV Bandeirantes
em 1977. Esmeraldino fez parte
da corrente que revolucionou o
choro no final dos anos 40 -pessoas dotadas de um profundo
sentido de harmonia, que filtraram a influência do jazz, deram
uma roupagem brasileira, sincopada, com sequências harmônicas das mais imprevisíveis, e permitiram ao choro ascender nos
anos 50 com uma roupagem revolucionária. Gente do naipe de Orlando Silveira, o acordeonista
parceiro de Esmeraldino, de
quem obtive um depoimento precioso um mês antes de sua morte,
e principalmente de Severino
Araújo, que, com sua Orquestra
Tabajara, foi o maior revolucionário do choro moderno, depois
de Garoto. Saí dali, preparei o encarte chamando-o de "gênio",
comparando-os aos maiores, como Garoto, Esmeraldino e Casé
(falecido dois anos antes).
Tio tinha passagens pela bossa
nova, passou parte da vida excursionando pelo México e por outros países, vivia de compor e
acompanhar comerciais, tem
duas filhas lindas -as "camondongas", na época com 8 a 10
anos, uma das quais andou fazendo novelas na Globo.
Passei um tempo preocupado
com o que escrevi na contracapa.
Será que exagerei? Será que fui vítima da "síndrome do crítico"?
No Bar do Alemão, minha amiga
Sara, a altamente técnica crooner
do Modern Tropical Quintet, me
acalmava. Disse-me que Tio era
seu acompanhamento predileto.
Depois, passei a ouvir suas composições gravadas pelos melhores.
Fui tirar a cisma muitos anos
depois, quando o grande Raphael
Rabello, que além de maior talento do violão brasileiro era um
profundo conhecedor do choro,
respondendo a uma pergunta sobre quem Radamés Gnatalli, um
dos pais da música brasileira no
século 20, considerava gênio:
apontou Laércio. Tempos depois,
no "Mistura Fina", o saxofonista
Paulo Moura me contou que o
conjunto do Duke Ellington liderado por seu filho, em visita ao
Rio, pediu para ir a São Paulo
apenas para conhecer o Tio.
Aí relaxei, coloquei o LP de
Laércio na vitrola (porque o CD o
Estúdio Eldorado ainda não relançou) e curti o "Penha-Lapa", o
"Fandangoso", o "Camondongas", o "Ao Meu Amigo Esmê" e
outras, composições que pouco
vieram a público, mas que ajudaram a fazer a cabeça do músico
brasileiro. E reconsiderei que talvez tenha sido muito econômico
nos adjetivos que utilizei para, na
primeira contracapa que escrevi,
ter saudado o meu amigo Tio.
E-mail - lnassif@uol.com.br
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