São Paulo, domingo, 01 de abril de 2001

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LUÍS NASSIF
O meu amigo Tio

Há dois gozos profundos nos críticos, especialmente nos de música: demolir reputações firmadas ou consagrar talentos desconhecidos. Quando se descobre qualquer um desses temas, um ângulo depreciativo do consagrado, uma virtude extraordinária no desconhecido, é como se aquela descoberta se tornasse um filho dileto de pai babão. E toca a exagerar nos adjetivos, tanto negativos quanto positivos.
É por isso que fiquei um tanto preocupado quando, no início de 1980, o notável crítico e produtor musical Armando Aflalo, dono da maior coleção de jazz do país, convidou-me a escrever o encarte e a contracapa do primeiro LP do pianista Laércio de Freitas, o Tio. Explicou-me que a música mais conhecida do Tio era "Capim Gordura", mas que ele tinha produção de choros de vanguarda.
Na ocasião, uma vez por semana eu exercitava uma crítica musical no "Jornal da Tarde", onde procurava analisar os discos mais sob a ótica de músico do que o do padrão em voga na crítica da época -do "in" e "out" que colocava toda a música no filtro do que a classe média intelectualizada considerava de bom ou de mau gosto.
A preocupação não foi tanto pelo convite, que muito me honrou, mas pelo que senti quando fui ouvir o Tio no Estúdio Eldorado. É um negro alto, magro, elegantíssimo, com barbas de Machado de Assis, um modo de falar, de andar lento, até a hora em que sentava ao piano. A postura continuava elegante, estudada, mas os acordes que dali jorravam eram impressionantes. No acompanhamento, o grande Xixa -maior cavaquinho de São Paulo, recentemente falecido- suava em bicas para entender aquela harmonia. Mais versado nas sutilezas do jazz, o grande guitarrista Heraldo do Monte acompanhava, mas com os dois olhos cravados no Tio, para não perder a sequência.
O LP chamou-se "Ao Amigo Esmê", o cavaquinho Esmeraldino que conheci no Festival do Choro promovido pela TV Bandeirantes em 1977. Esmeraldino fez parte da corrente que revolucionou o choro no final dos anos 40 -pessoas dotadas de um profundo sentido de harmonia, que filtraram a influência do jazz, deram uma roupagem brasileira, sincopada, com sequências harmônicas das mais imprevisíveis, e permitiram ao choro ascender nos anos 50 com uma roupagem revolucionária. Gente do naipe de Orlando Silveira, o acordeonista parceiro de Esmeraldino, de quem obtive um depoimento precioso um mês antes de sua morte, e principalmente de Severino Araújo, que, com sua Orquestra Tabajara, foi o maior revolucionário do choro moderno, depois de Garoto. Saí dali, preparei o encarte chamando-o de "gênio", comparando-os aos maiores, como Garoto, Esmeraldino e Casé (falecido dois anos antes).
Tio tinha passagens pela bossa nova, passou parte da vida excursionando pelo México e por outros países, vivia de compor e acompanhar comerciais, tem duas filhas lindas -as "camondongas", na época com 8 a 10 anos, uma das quais andou fazendo novelas na Globo.
Passei um tempo preocupado com o que escrevi na contracapa. Será que exagerei? Será que fui vítima da "síndrome do crítico"? No Bar do Alemão, minha amiga Sara, a altamente técnica crooner do Modern Tropical Quintet, me acalmava. Disse-me que Tio era seu acompanhamento predileto. Depois, passei a ouvir suas composições gravadas pelos melhores.
Fui tirar a cisma muitos anos depois, quando o grande Raphael Rabello, que além de maior talento do violão brasileiro era um profundo conhecedor do choro, respondendo a uma pergunta sobre quem Radamés Gnatalli, um dos pais da música brasileira no século 20, considerava gênio: apontou Laércio. Tempos depois, no "Mistura Fina", o saxofonista Paulo Moura me contou que o conjunto do Duke Ellington liderado por seu filho, em visita ao Rio, pediu para ir a São Paulo apenas para conhecer o Tio.
Aí relaxei, coloquei o LP de Laércio na vitrola (porque o CD o Estúdio Eldorado ainda não relançou) e curti o "Penha-Lapa", o "Fandangoso", o "Camondongas", o "Ao Meu Amigo Esmê" e outras, composições que pouco vieram a público, mas que ajudaram a fazer a cabeça do músico brasileiro. E reconsiderei que talvez tenha sido muito econômico nos adjetivos que utilizei para, na primeira contracapa que escrevi, ter saudado o meu amigo Tio.

E-mail - lnassif@uol.com.br



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