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São Paulo, domingo, 01 de junho de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Triângulo nem sempre amoroso

RUBENS RICUPERO

A inauguração de nova página da história argentina e a proposta de negociar acordo direto Mercosul-EUA põem em relevo a atualidade do último livro de Moniz Bandeira, "Brasil, Argentina e Estados Unidos", com os subtítulos "Conflito e integração na América do Sul - Da Tríplice Aliança ao Mercosul, 1870-2003" (editora Revan). Não é possível, com efeito, captar alguns dos aspectos mais cruciais das relações entre os dois maiores países sul-americanos se se abstraírem do papel determinante que nelas desempenham os EUA.
Essa mesma figura do triângulo estava presente em trabalho que dediquei há tempos à história dos laços entre o Brasil, a América Latina e os EUA, que eu sugeria constituir uma relação triangular inseparável. Embora o escopo geográfico do livro de Moniz Bandeira possa dar a impressão de mais circunscrito, sua ambição é, em realidade, muito maior. O foco é de preferência concentrado sobre as duas nações do Cone Sul, mas o facho de luz se alarga gradualmente a fim de abarcar, sempre que relevante, não só todos os demais países do continente mas igualmente cada uma das grandes questões internacionais que desafiaram as diplomacias sul-americanas mesmo fora e além do âmbito hemisférico. Nesse sentido, é obra original, uma autêntica história conjunta das relações diplomáticas do Brasil e da Argentina durante 133 anos.
Tem razão, assim, o historiador americano Frank Mc Cann, ao apresentá-la como "leitura indispensável". Não conheço, nem creio que exista, outro trabalho desse fôlego -cerca de 680 páginas- que cubra de modo tão completo e analítico o período contemporâneo, que os estudos clássicos costumam ignorar por escolherem, quase invariavelmente, o passado colonial ou os acontecimentos do século 19, estudados de forma mais exaustiva. Uma das superioridades que fazem indispensável a contribuição de Moniz Bandeira está justamente aí, em ter trazido a narrativa até os dias atuais, literalmente até ontem. Ele soube combinar a história tradicional amparada nos documentos de arquivos com juízos nítidos, interpretações pessoais, que nem todos partilharão mas que não são arbitrárias, pois se inspiram nas teorias modernas das relações internacionais e na sociologia política.
O problema desse triângulo é que dois dos pólos -o Brasil e a Argentina (ou a América Latina, não importa)- giram em torno de um eixo de relativa igualdade de poder, pertencem à mesma divisão, para usar linguagem futebolística. Ao passo que o terceiro ocupa no mundo a posição ímpar de única e incontestável hiperpotência. Suas relações com os dois sul-americanos são marcadas por um diferencial de poder incomensurável, superior em muito ao que tinha sido na data escolhida para o início dessa história -1870. O que torna, de fato, diferente a evolução argentina e brasileira da história de nações européias ou dos asiáticos e africanos, ex-colônias da Europa, é que, no hemisfério ocidental, crescemos (?) todos à sombra avassaladora da potência hegemônica americana, primeiro regional, hoje planetária e exclusiva.
Diante dessa gritante desigualdade, três posturas básicas ou suas variantes são concebíveis. A primeira foi a de Rio Branco, da "aliança não-escrita" com os EUA, a opção preferencial por Washington, com caráter pragmático e utilitário. Em troca do apoio diplomático, o Barão contava receber dos americanos amparo ou neutralidade nas questões fronteiriças, sobretudo com os europeus, e suporte ao prestígio internacional do Brasil. Na era Vargas, simplificava-se a equação em termos da aliança na guerra, recompensada pela siderúrgica de Volta Redonda, símbolo da industrialização.
Uma segunda posição, degenerescência da primeira na concepção extremada e irrealista, assim como na linguagem desabrida e aviltante, foi a do "realismo periférico" do período Menem, a das "relações carnais", na sua expressão mais desonrosa. A submissão era explícita e desavergonhada, mas nem por isso os serviços prestados foram retribuídos, conforme já se vira antes na Guerra das Malvinas e voltou a repetir-se no desdenhoso abandono e indiferença com que foi recebido o colapso financeiro argentino.
A terceira é a da edificação do Mercosul, quem sabe de sua extensão a outros sul-americanos, não como gesticulação quixotesca contra os EUA, mas porque o projeto se justifica por méritos próprios, pelo muito que temos a ganhar em complementaridade econômica, integração energética, vinculação física, em suma, porque é a favor de nós mesmos. É a única das três atitudes que implica a superação definitiva da rivalidade estéril entre Brasil e Argentina, na sua substituição pelo papel de ambos em favor do desenvolvimento dos mais vulneráveis, permitindo-lhes, mediante o acesso aos dois mercados maiores, ampliar a dimensão dos mercados domésticos demasiado apertados.
Caso se consolide o Mercosul, seu desdobramento futuro seria, na lógica da unificação européia, inspirar-se no "mito criador" da busca de política externa convergente, do enriquecimento cultural recíproco. Antes, porém, de nos deixarmos embalar por "sonhos intensos", é forçoso reconhecer a debilidade dos dois principais parceiros, sua constante tentação de deixar-se manipular pelos mais fortes, de recair na ilusão de que é possível salvar-se sozinho.
De todas as fragilidades, uma das mais inquietantes é a persistente falta de clareza na definição estratégica dos projetos nacionais ou regionais de desenvolvimento de longo prazo. Se não formos capazes de decidir, em Buenos Aires e Brasília, o que queremos ser no futuro, não passará de devaneio, de "fuite en avant", pensar que o Mercosul nos salvará de nossa perplexidade.
No fundo, só existem duas alternativas, ambas dependentes das escolhas macroeconômicas. A primeira é a retomada do crescimento e a redução da vulnerabilidade à globalização financeira. A segunda é a radicalização da inserção comercial e financeira, que nos levou às quase mortais crises recentes. Ou negociamos juntos no tabuleiro comercial e financeiro, com personalidade de Mercosul e solidariedade econômica e política para dar ao triângulo alguma consistência. Ou nos resignamos aos desígnios do mercado financeiro, à aceitação de uma Alca desigual, na qual seremos relegados à última categoria, conduzindo aos poucos à liquificação da identidade econômica e da soberania monetária, à dissolução inevitável de todas as figuras geométricas numa espécie de geléia geral.


Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).


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