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São Paulo, domingo, 01 de junho de 2003

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LUÍS NASSIF

O sambista branco do Méier

Neste início de junho, faz três anos da morte de João Nogueira. Antes de morrer ele andava meio desaparecido, sofreu dois derrames, se escondeu. Quando começava a se recuperar, foi fulminado por um enfarte. Por isso sua morte não provocou a comoção à altura de sua importância para a música brasileira.
No entanto, ao lado de Martinho da Vila, Paulinho da Viola e Elton Medeiros, foi o grande nome do samba, uma geração que segura a peteca até a chegada de Zeca Pagodinho.
Sua carreira começou um pouco mais tarde que a maioria da sua geração. João nasceu em 1941, no Méier. Sua primeira gravação foi apenas em 1968. Nem tinha saído ainda de Poços e São João da Boa Vista, e a música que repercutiu muito na época falava das 200 milhas da costa brasileira -uma batalha diplomática na qual o Brasil reivindicava direitos sobre essa extensão da costa.
O estilo de composição, a voz, a divisão que impunha à música eram inconfundíveis. Foi um dos estilos mais pessoais e um dos sambistas mais completos que o país conheceu.
Nesta sexta, em Ribeirão Preto, dava para ouvir um dos cantores do Templo da Cidadania -um local de música muito interessante- cantar as músicas de João Nogueira como João Nogueira.
Lembro por volta de 1980 ele e Paulinho da Viola gravando um samba de Geraldo Pereira. A interpretação de Paulinho era aquela clareza de correção. A de João Nogueira, o puro embalo da malandragem, o sincopado imprevisível, a malemolência do malandro.
No início, consolidou um conjunto de parcerias alegres com Eugênio Monteiro, belíssimo letrista e parceiro em "Nó na Madeira" e "Súplica" ("O corpo a morte leva / A voz some na brisa / A dor sobe pras trevas / O nome a obra imortaliza").
Em seguida, conheceu Paulo César Pinheiro, com quem comporia uma fieira de sambas clássicos, densos. Nos anos 70, constituíram uma dupla que, em letra, música e criatividade de temas, rivalizava com João Bosco-Aldir Blanc. São desse período clássicos como "O Poder da Criação", "E Lá Vou Eu" ("E lá vou eu / Melhor que mereço / Pagando a bom preço / A evolução"), "Eu, hein, Rosa" e "Espelho" -este, para mim, um dos grandes sambas da história do país, à altura de "Meus 20 Anos", de Wilson Batista, uma lembrança comovente do pai, chorão que tocou violão com Pixinguinha e com o histórico Rogério Guimarães.
E foi numa noite daqueles tempos que juntamos o povo do bar do Alemão em torno da mesa oito, cantando os sambas de João Nogueira. Àquela altura, ele era um nome consagrado. O bar ainda estava vazio, e o Nego Almeida puxou o samba, nem lembro se "O Poder da Criação" ou "Súplica". Na mesa ao lado do caixa estava um homem comendo, sozinho, sem conversar com ninguém.
À medida que o samba embalava, ele levantou, ficou de pé junto a nossa mesa e ousou repetir alguns estribilhos. A cara bixiguenta era inconfundível. Era o próprio João Nogueira apreciando sua obra, com a humildade dos grandes.
Tornou-se freguês do boteco sempre que vinha do Rio. Mesmo depois que o bar perdeu o embalo e as noitadas se resumiam às segundas, muitas vezes lá estava João Nogueira esparramando seu balanço, com o parceiro Paulo César Pinheiro e com Clara Nunes.
Não sei por que, mas de vez em quando me dá uma saudade danada daqueles tempos de boemia e jornalismo.

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