São Paulo, Segunda-feira, 01 de Novembro de 1999
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OPINIÃO ECONÔMICA
A barbárie vista pelos otimistas

JOÃO SAYAD
Há coisas boas acontecendo no Brasil.
Neste feriado longo de Todos os Santos, temos os filmes da Mostra de Filme Estrangeiro, o Festival de Artes Cênicas, outros filmes estrangeiros e novos filmes nacionais muito bons.
Há também boa safra de novos livros brasileiros.
Até o Paulo César, desempregado com um filhinho de oito meses, que saiu na primeira página da Folha de 28 de outubro, segurando um revólver apontado para a cabeça do gerente do banco que assaltava, está escrevendo um livro.
Muita coisa pode estar indo mal, mas a cultura vai muito bem, obrigado. Bastou regar um pouco com algum apoio fiscal e floresceu como chuchu.
Entre filmes e livros, o melhor e que mais me impressionou foi o artigo do professor Carlos Lessa, da Unicamp e da UFRJ, a ser publicado na "Praga", revista que se destaca entre outras que têm saído recentemente.
O professor Lessa explica com lucidez, sensibilidade e erudição, um enigma que me incomodava: como a elite empresarial brasileira aceitou quatro anos de sobrevalorização cambial, abertura indisciplinada da economia, desindustrialização e taxas de juros estratosféricas?
Responde convincentemente que a elite capitalista brasileira é patrimonialista, pouco apegada à disciplina do trabalho e à ganância dos verdadeiros capitalistas, e mais afeita à propriedade, à renda de juros e aluguéis.
Descendem de capitães donatários, transformados em "donos do poder", depois em proprietários de imóveis, e recentemente, em modernos rentistas da dívida pública.
Desde 1974 essa elite se sente ameaçada pela democratização de um país marcado por imensas desigualdades e injustiças.
Além disso, estava oprimida pelos sonhos desenvolvimentistas dos tecnocratas e militares que implantaram o 2º PND (Plano Nacional de Desenvolvimento) e as estatais.
Com tantas pressões, venderam tudo.
Venderam o que tinham e o que não tinham, as empresas estatais, para derrubar o preço do dólar.
Compraram dólares baratos e foram embora.
A classe média foi até o cais do porto abanando lenços brancos de despedida, abandonada à sanha de novos tecnocratas, que continuam a atacar as "polpudas" aposentadorias, ensino gratuito e outras "mamatas".
Lessa decifrou o enigma: o país é vítima de tragédia de abandono, orfandade e falta de amor.
Entretanto, Lessa deposita grandes esperanças de que essa classe média, agora abandonada, passe a se apoiar no povo, nos excluídos dos bairros pobres, na grande massa da população que sempre viveu de expedientes, que sempre foi terceirizada.
A esperança vem da observação de novas formas de convivência entre os habitantes das favelas, os meninos de rua, as mães solteiras e chefes de família sem emprego e outros exemplos.
A pobreza, afirma, não é anômica, desorganizada ou bárbara.
Compartilha o ponto de vista de muitos homens e mulheres de boa vontade que trabalham no terceiro setor, de antropólogos que analisam bairros periféricos e os excluídos de vários segmentos da sociedade brasileira. Relatam casos de solidariedade, criatividade e sobrevivência.
Não consigo ter tanta esperança. Desemprego depois da hiperinflação foi a combinação explosiva de onde nasceu o nazismo.
Os militares mais aguerridos vieram da pequena classe média, indignada pela imoralidade da hiperinflação e humilhada pelo desemprego.
Para aproveitar o fim-de-semana, vale a pena ler dois outros livros: o do dr. Drauzio Varella sobre o Carandiru e o romance de Paulo Lins, "Cidade de Deus".
O livro sobre o Carandiru é leitura fácil e chocante. Descreve a organização, os hábitos e os casos da "sociedade" dos condenados à prisão.
O livro de Paulo Lins é romance sobre a sociedade do tráfico, do crime e a vida nas favelas. Arrepia todos os pêlos, e não fosse o medo que causa, poderia ser lido de uma vez só.
São livros sobre a barbárie que cresce e se organiza entre os brasileiros, que moram aqui perto, nas favelas do Rio de Janeiro e de São Paulo.
As últimas contas que vi indicam que os pobres são 135 milhões. Nós, que lemos jornal e vamos a festivais e exposições, seríamos apenas 25 milhões.
Não sabemos se a Febem é apenas uma ilha de barbárie no meio da civilização, ou se ao contrário, estamos mergulhados em um mar de barbárie, onde sobrevivem apenas alguns náufragos da classe média.



João Sayad, 53, economista, professor da Faculdade de Economia e Administração da USP, ex-ministro do Planejamento (governo José Sarney) e autor de "Que País é Este?" (editora Revan), escreve às segundas-feiras nesta coluna.
E-mail: jsayad@ibm.net


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