|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
OPINIÃO ECONÔMICA
A barbárie vista pelos otimistas
JOÃO SAYAD
Há coisas boas acontecendo
no Brasil.
Neste feriado longo de Todos
os Santos, temos os filmes da
Mostra de Filme Estrangeiro, o
Festival de Artes Cênicas, outros
filmes estrangeiros e novos filmes nacionais muito bons.
Há também boa safra de novos livros brasileiros.
Até o Paulo César, desempregado com um filhinho de oito
meses, que saiu na primeira página da Folha de 28 de outubro,
segurando um revólver apontado para a cabeça do gerente do
banco que assaltava, está escrevendo um livro.
Muita coisa pode estar indo
mal, mas a cultura vai muito
bem, obrigado. Bastou regar um
pouco com algum apoio fiscal e
floresceu como chuchu.
Entre filmes e livros, o melhor
e que mais me impressionou foi
o artigo do professor Carlos Lessa, da Unicamp e da UFRJ, a ser
publicado na "Praga", revista
que se destaca entre outras que
têm saído recentemente.
O professor Lessa explica com
lucidez, sensibilidade e erudição, um enigma que me incomodava: como a elite empresarial
brasileira aceitou quatro anos
de sobrevalorização cambial,
abertura indisciplinada da economia, desindustrialização e taxas de juros estratosféricas?
Responde convincentemente
que a elite capitalista brasileira
é patrimonialista, pouco apegada à disciplina do trabalho e à
ganância dos verdadeiros capitalistas, e mais afeita à propriedade, à renda de juros e aluguéis.
Descendem de capitães donatários, transformados em "donos do poder", depois em proprietários de imóveis, e recentemente, em modernos rentistas
da dívida pública.
Desde 1974 essa elite se sente
ameaçada pela democratização
de um país marcado por imensas desigualdades e injustiças.
Além disso, estava oprimida
pelos sonhos desenvolvimentistas dos tecnocratas e militares
que implantaram o 2º PND
(Plano Nacional de Desenvolvimento) e as estatais.
Com tantas pressões, venderam tudo.
Venderam o que tinham e o
que não tinham, as empresas estatais, para derrubar o preço do
dólar.
Compraram dólares baratos e
foram embora.
A classe média foi até o cais do
porto abanando lenços brancos
de despedida, abandonada à sanha de novos tecnocratas, que
continuam a atacar as "polpudas" aposentadorias, ensino
gratuito e outras "mamatas".
Lessa decifrou o enigma: o país
é vítima de tragédia de abandono, orfandade e falta de amor.
Entretanto, Lessa deposita
grandes esperanças de que essa
classe média, agora abandonada, passe a se apoiar no povo,
nos excluídos dos bairros pobres,
na grande massa da população
que sempre viveu de expedientes, que sempre foi terceirizada.
A esperança vem da observação de novas formas de convivência entre os habitantes das
favelas, os meninos de rua, as
mães solteiras e chefes de família sem emprego e outros exemplos.
A pobreza, afirma, não é anômica, desorganizada ou bárbara.
Compartilha o ponto de vista
de muitos homens e mulheres de
boa vontade que trabalham no
terceiro setor, de antropólogos
que analisam bairros periféricos
e os excluídos de vários segmentos da sociedade brasileira. Relatam casos de solidariedade,
criatividade e sobrevivência.
Não consigo ter tanta esperança. Desemprego depois da hiperinflação foi a combinação explosiva de onde nasceu o nazismo.
Os militares mais aguerridos
vieram da pequena classe média, indignada pela imoralidade
da hiperinflação e humilhada
pelo desemprego.
Para aproveitar o fim-de-semana, vale a pena ler dois outros livros: o do dr. Drauzio Varella sobre o Carandiru e o romance de Paulo Lins, "Cidade
de Deus".
O livro sobre o Carandiru é leitura fácil e chocante. Descreve a
organização, os hábitos e os casos da "sociedade" dos condenados à prisão.
O livro de Paulo Lins é romance sobre a sociedade do tráfico,
do crime e a vida nas favelas.
Arrepia todos os pêlos, e não fosse o medo que causa, poderia ser
lido de uma vez só.
São livros sobre a barbárie que
cresce e se organiza entre os brasileiros, que moram aqui perto,
nas favelas do Rio de Janeiro e
de São Paulo.
As últimas contas que vi indicam que os pobres são 135 milhões. Nós, que lemos jornal e
vamos a festivais e exposições,
seríamos apenas 25 milhões.
Não sabemos se a Febem é
apenas uma ilha de barbárie no
meio da civilização, ou se ao
contrário, estamos mergulhados
em um mar de barbárie, onde
sobrevivem apenas alguns náufragos da classe média.
João Sayad, 53, economista, professor da
Faculdade de Economia e Administração
da USP, ex-ministro do Planejamento (governo José Sarney) e autor de "Que País é
Este?" (editora Revan), escreve às segundas-feiras nesta coluna.
E-mail: jsayad@ibm.net
Texto Anterior: Consumo irracional: Americano não sabe poupar, diz pesquisa Próximo Texto: Aviação comercial: "Brasil deve liberar linhas domésticas" Índice
|