São Paulo, quinta-feira, 02 de maio de 2002

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OPINIÃO ECONÔMICA

Alca e vocação colonial

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Como é recente, leitor, o passado remoto! Escrevendo em 1811, no "Correio Braziliense", o pai do jornalismo brasileiro, Hipólito da Costa, referiu-se nos seguintes termos ao governo português, então sediado no Brasil: "Os ministros portugueses, quando (...) sacrificam os interesses de sua pátria, desculpam-se sempre com o capcioso subterfúgio de dizer que a nação (...) não pode resistir às grandes potências. (...) É meramente uma capa com que procuram encobrir a sua ignorância e o não saberem manejar os negócios de que se encarregam".
Passaram-se quase dois séculos, mas o subterfúgio continua o mesmo. A cada momento, os ministros brasileiros referem-se à "correlação de forças" (leia-se: o poder dos EUA) para tentar justificar as suas atitudes subalternas. Em todos os ministérios relevantes, pululam figuras especializadas em construir carreiras confortáveis à custa do interesse nacional.
Lembro as palavras do grande Hipólito da Costa a propósito das negociações da Alca (Área de Livre Comércio das Américas). Por incrível que possa parecer, e a despeito dos sinais claríssimos de que os EUA estão cada vez mais protecionistas e menos dispostos a fazer concessões, as negociações continuam.
Na semana passada, reuniões na Venezuela definiram alguns pontos importantes relativos à Alca. As negociações prosseguem nos dias 12 e 13 de maio, no Panamá. Aproveitando-se da fraqueza e da covardia da maioria das lideranças latino-americanas, os EUA forçam a continuação dos entendimentos nos temas do seu interesse.
Ao mesmo tempo, o Executivo e o Congresso dos EUA vão estabelecendo, sem a menor cerimônia, restrições mais severas ao comércio internacional e novas medidas de defesa das suas empresas contra a concorrência estrangeira. No final da semana passada, por exemplo, o Senado e a Câmara dos EUA anunciaram um acordo para ampliar os já elevados subsídios aos agricultores norte-americanos ao longo dos próximos seis anos.
No curto prazo, um dos objetivos dos negociadores dos EUA na Alca é criar o maior constrangimento possível para o governo brasileiro que será eleito no final deste ano. Nas reuniões na Venezuela, estabeleceu-se que os países integrantes de uma eventual futura Alca terão que entregar até 15 de janeiro de 2003 (15 dias depois da posse do novo governo brasileiro) as suas propostas de liberalização de mercados em cinco áreas cruciais: bens industriais, agricultura, serviços, compras governamentais e investimentos diretos estrangeiros. Estabeleceu-se, também, que as tarifas de importação de referência para a abertura comercial serão aquelas que estiverem em vigor em 15 de janeiro de 2003 ou as que forem consolidadas na OMC (Organização Mundial do Comércio) até fins de 2004, prevalecendo as que forem mais baixas.
Decididamente, o próximo governo brasileiro não terá muito tempo para respirar. Tanto mais que as metas dos EUA são, segundo se noticia, extremamente ambiciosas. No que diz respeito, por exemplo, a investimentos, os EUA querem que seja concedido igual tratamento ao capital estrangeiro e ao capital nacional. Quanto a compras governamentais, a pretensão norte-americana é que as regras da Alca se apliquem não só em nível federal mas também aos governos estaduais e municipais.
Não podemos perder de vista, leitor, que isso tudo está acontecendo depois que a Câmara de Representantes dos EUA concedeu ao Executivo, em fins de 2001, um mandato negociador muito limitado, que praticamente retira da negociação da Alca todos os principais temas de interesse do Brasil, como já foi explicado em artigos anteriores publicados nesta coluna.
E ninguém, no governo brasileiro, parece fazer a pergunta óbvia: o que é que o Brasil ainda está fazendo nessa mesa de negociações?
Não é verdade que o Brasil não possa defender decentemente os seus interesses. Mas, como dizia Hipólito da Costa, se os nossos representantes têm razão em dizer que a nação não pode sustentar a sua independência, então "deixem de ser Governo Soberano e metam-se debaixo da tutela de alguma potência".


Paulo Nogueira Batista Jr., 47, economista, pesquisador visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP e professor da FGV- SP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A Economia como Ela é..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002).
E-mail - pnbjr@attglobal.net


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