São Paulo, segunda, 2 de novembro de 1998

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OPINIÃO ECONÔMICA
Profissionais

JOÃO SAYAD
Profissionais se especializam tanto que acabam se apaixonando pelo problema que deveriam resolver. E nunca mais resolvem.
Médicos podem fazer mais uma última cirurgia, dentistas deixam clientes de boca aberta muitas horas em troca de bela incrustação que só outro colega poderá ver, arquitetos abominam o corrimão das escadas por razões estéticas, advogados mentem, cabeleireiros transformam senhoras idosas em Rapunzéis, com lindas e jovens cabeleiras quando vistas de costas, mas assustadoras de frente.
O pacote de ajuste fiscal anunciado na última quarta-feira é obra de profissionais. O objetivo -ajustar a quantidade de dólares que produzimos à quantidade de dólares que gastamos- foi esquecido há muito tempo.
O ajuste fiscal é fim em si próprio e por razões transcendentais.
É importante porque "nenhum governo pode gastar além do que arrecada" (como no Japão?). É importante porque investidores acham importante. Investidores acham importante porque os profissionais dizem que é importante.
Os profissionais não são culpados. Cumprem missão -arrecadar US$ 25 bilhões a mais do que o governo gasta.
Um amador proporia: "Aumente o nível de atividade, a produção e o emprego e o resultado se obtém". Essa solução é "trivial" e não precisaria de profissionais.
Outro diletante diria: "Por que não se gasta menos com juros?".
Não é o que foi pedido. Esse assunto é de competência exclusiva do Banco Central independente, que insiste em que a sociedade deva decidir como fazer o ajuste fiscal, ao mesmo tempo que, independentemente de qualquer consulta à sociedade, fixa câmbio e juros de tal forma que precisamos fazer um ajuste fiscal de US$ 25 bilhões com recessão para pagar juros.
O problema está posto e olhos profissionais brilham diante do desafio.
Os gastos em investimentos já são irrelevantes, a reforma da Previdência ajuda, mas só daqui a muitos anos, quando estaremos aposentados e discutindo outros assuntos.
O problema é sofisticado. Depois de tantos anos de corte de gastos -desde a crise do petróleo em 1974-, temos que inventar déficits.
O texto do pacote não se apequena diante do problema e apresenta inovação. A previdência privada paga aposentadorias, em média, menores do que a pública. Como é possível tanta injustiça?
Na realidade, a previdência privada é mais justa porque, desde o presidente Geisel, de saudosa memória, a previdência privada paga aposentadoria para trabalhadores rurais idosos.
Paga um salário para cada um. Coisa boa do governo brasileiro e felizmente esquecida pelos profissionais. O resultado é que o número de aposentados é, com muita justiça, maior, e a aposentadoria média, menor.
Entretanto, se pagamos salário mínimo para os aposentados rurais, o aposentado do setor público passa a figurar como marajá, como dizia o presidente Collor.
O aposentado do setor público recebe em média mais, pois conta com aposentadorias especiais (não relevante no agregado), com leis especiais (no agregado não relevante) e com profissionais qualificados, como juízes, promotores, professores e procuradores.
Quando o governo contrata funcionário público, está escrito no contrato que será aposentado segundo a lei, sem que tenha que contribuir. Por isso o salário é menor do que no setor privado, no qual o assalariado contribui. As despesas com aposentadoria seriam parte da folha de pagamento da União.
De repente, profissionais foram analisar déficits, faltas e carências. Concluíram que, se existem despesas sem receitas, existem deficiências, o déficit da aposentadoria do setor público. E resolvem, portanto, cobrar 11% de imposto sobre as aposentadorias. Só na época do presidente Médici foi criado imposto desse tipo sobre aposentados.
Agora, comentaristas de rádio matinais vão encher a boca. "É uma vergonha que o aposentado do setor público não contribua!"
E as despesas com juros? Também são feitas sem previsão de receita. Também são déficits. O governo também paga sem ter receitas. E a sociedade, sempre chamada a decidir sobre cortes, não é consultada sobre essa despesa.
É verdade que o governo não pode baixar juros nem tributar juros com mais impostos. O capital é ágil, móvel, energético, voa rapidamente para outras praças que lhe paguem melhor.
Os aposentados, como os postes, não saem do lugar nem podem fazer nada. Só podem pagar.


João Sayad, 51, economista, professor da Faculdade de Economia e Administração da USP e ex-ministro do Planejamento (governo José Sarney), escreve às segundas-feiras nesta coluna. E-mail: jsayad@ibm.net



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