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OPINIÃO ECONÔMICA
Ah, que belezinha de coelhinho de Páscoa
ALOYSIO BIONDI
Atarefado com a aproximação
do Domingo de Páscoa, o coelhinho corria alegremente pelos jardins do Palácio do Planalto, em
Brasília. Tlic-tlic, tlic, tlic-tlic-tlic
(tratava-se de um coelhinho muito refinado, que já havia frequentado os parques de Harvard e até
da Sorbonne, daí o ruído delicado
dos saltos que dava), fazia o coelhinho.
Mesmo atarefado, ele não resistiu à tentação de dar uma "espiadinha" na festa que se realizava
em Palácio, para posse dos conselheiros da Comunidade Solidária,
órgão governamental incumbido
de combater a miséria e reduzir as
desgraças do povão brasileiro. Refinado, como já se disse, o coelhinho encantou-se com o que viu.
Gente fina, perfumada, bem vestida. Totalmente Brasil globalizado, comunicando-se em inglês e
francês (ou espanhol e italiano,
das telefônicas). Cantores, intelectuais, artistas, jornalistas, empresários. Todos gente fina, sensíveis, solidários. Nada daquela miséria, aquele subdesenvolvimento
do Betinho, que pensava que pobreza quer dizer pobre, fome quer
dizer fome, morte de filhos quer
dizer morte de filho. C-o-i-s-a h-o-r-r-í-v-e-l, relembrou o coelhinho.
Seu entusiasmo cresceu, quando
ouviu palmas explodirem no ambiente. Aplausos para o presidente Fernando Henrique Cardoso,
em seu finíssimo terno de linho
branco, que repetia aos presentes:
"não vai haver cortes na área social. Mandei a equipe econômica
restabelecer as verbas de R$ 139
milhões para os programas de
combate aos problemas sociais".
O coelhinho não se conteve. Gritou três hip-hurras, deu cambalhotas no ar, e pôs-se a cantar:
"País globalizado é outra coisa-a-a-a, país globalizado é outra coisa-a-a" - utilizando, é claro, o
som do Hino Nacional dos Estados Unidos da América do Norte.
O coelhinho poliglota, certamente, não lê jornais brasileiros -
não porque não domine o idioma
português, mas porque abomina
tudo que é tipicamente nacional,
não-globalizado.
"Pobreza pura", diria olhando
para o seu umbigo. Se lesse jornais, teria visto uma reportagem
publicada poucos dias antes da
festa dos solidários-com-os-pobres. Mais exatamente, na segunda-feira, 22 de março. Título: "Estiagem aumenta a mortalidade
infantil no Nordeste". O título está errado. Por quê? O texto da reportagem diz que no interior de
Alagoas a mortalidade infantil
chegou a 425 crianças mortas para cada 1.000 em janeiro último. E
ficou nos 370 por 1.000 em fevereiro.
O que esses números significam?
É simples: o próprio texto explica
que o recorde mundial em mortalidade era de Níger, na África devastada pelas guerras civis, com
multidões de refugiados sem ter o
que comer, em regiões ainda por
cima devastadas pela seca. Qual o
índice de Níger, recordista mundial? São 200 crianças mortas em
1.000. E no Nordeste, neste Brasil
globalizado da Comunidade Solidária? O dobro. Mais de 400 por
1.000. A causa? A seca? Não. O texto do repórter diz o que o título
busca esconder: em janeiro, o governo suspendeu o envio das cestas básicas para a região. Em fevereiro, a suspensão continuou. Só a
10 de março as cestas chegaram.
Isto é, 70 dias sem comida, numa
região já miserável, ainda por cima destroçada pela seca.
Só isso? Não. Tem mais. Além da
suspensão da cesta básica, o governo suspendeu também o pagamento dos flagelados que trabalhavam nas frentes de trabalho.
Certamente, os perfumados, cheirosos, elegantes conselheiros do
Comunidade Solidária não sabiam e nem querem saber de nada
disso.
"Disgusting". Fome, miséria,
crianças morrendo, literalmente,
como moscas? "Disgusting". A
não ser, é claro, para servir de motivo a fotos maravilhosas de fotógrafos geniais. Já pensou que impacto? Que vernissage de arromba
de uma exposição com elas? Wonderful. Ou marveilleux. Parece
Nu-Iorque.
O coelhinho se entusiasmou
com os R$ 139 milhões anunciados pelo presidente da República.
O coelhinho certamente não viu
também a entrevista do secretário
do Tesouro, poucos dias antes,
anunciando que o governo conseguira reduzir em nada menos de
R$ 1,8 bilhão os gastos de "custeio
e investimentos" em janeiro e fevereiro, obtendo um saldo positivo (o tal de "superávit primário"
combinado com o FMI). Dois bilhões de reais em dois meses, R$ 1
bilhão por mês.
Aplausos, comentários entusiasmados nos meios de comunicação, círculos empresariais, arraiais ligados aos coronéis da Bahia e Nordeste/Goiás. Ora, acontece que a única área em que o governo pode "cortar" é exatamente
em "custeio", isto é, as verbas destinadas aos diversos ministérios
-inclusive para cestas básicas,
compra de remédios, manutenção
de frentes de trabalho, bolsas de
estudo, funcionamento de hospitais. Não só no Nordeste. No país
todo. É aí que o governo está "cortando", inutilmente - porque
vai gastar R$ 130 bilhões, tanto
quanto de todo o Orçamento (tirando-se a Previdência) ao pagamento de juros. "Restabelecer" R$
139 milhões (com a letra "m"), como diz o presidente da República,
é uma gota d'água diante dos cortes de R$ 1 bi por mês. Os meios de
comunicação escondem. Evitam
que a sociedade saiba o preço verdadeiro do acordo com os banqueiros internacionais, protegidos pelo FMI. Evitam, para que a
sociedade não discuta outros caminhos, como a moratória.
Em telefonema ao colunista
Clóvis Rossi, segundo narrativa
do próprio em uma coluna recente, o ministro Paulo Renato disse
que "há jornalistas tendo orgasmos com a crise" (do Real). Estranho raciocínio. Afinal, 95% dos
jornalistas, ou mais, foram cúmplices no clima de falso otimismo
sobre a "política econômica" do
governo. Não iriam comemorar
seu próprio desmascaramento,
agora. E os 5% que criticaram não
têm "orgasmos" com o genocídio
que está sendo praticado no Brasil. Na verdade, sentem repulsa
diante do comportamento dos
globalizados de todos os naipes. E
cúmplices de genocídios.
Ah, sim. O coelhinho? Foi avistado pelos solidários-festeiros
-perfumados, elegantes, cosmopolitas-, e voltou para casa feliz,
sob gritos festivos: Olha que belezinha, o coelhinho da Páscoa.
Olha que... Tlic-tlic-tlic.
That is the new Brazil!!
Aloysio Biondi, 62, é jornalista econômico. Foi
editor de Economia da Folha. Escreve aos sábados no caderno Dinheiro.
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