São Paulo, Sábado, 03 de Abril de 1999
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OPINIÃO ECONÔMICA

Ah, que belezinha de coelhinho de Páscoa

ALOYSIO BIONDI

Atarefado com a aproximação do Domingo de Páscoa, o coelhinho corria alegremente pelos jardins do Palácio do Planalto, em Brasília. Tlic-tlic, tlic, tlic-tlic-tlic (tratava-se de um coelhinho muito refinado, que já havia frequentado os parques de Harvard e até da Sorbonne, daí o ruído delicado dos saltos que dava), fazia o coelhinho.
Mesmo atarefado, ele não resistiu à tentação de dar uma "espiadinha" na festa que se realizava em Palácio, para posse dos conselheiros da Comunidade Solidária, órgão governamental incumbido de combater a miséria e reduzir as desgraças do povão brasileiro. Refinado, como já se disse, o coelhinho encantou-se com o que viu. Gente fina, perfumada, bem vestida. Totalmente Brasil globalizado, comunicando-se em inglês e francês (ou espanhol e italiano, das telefônicas). Cantores, intelectuais, artistas, jornalistas, empresários. Todos gente fina, sensíveis, solidários. Nada daquela miséria, aquele subdesenvolvimento do Betinho, que pensava que pobreza quer dizer pobre, fome quer dizer fome, morte de filhos quer dizer morte de filho. C-o-i-s-a h-o-r-r-í-v-e-l, relembrou o coelhinho.
Seu entusiasmo cresceu, quando ouviu palmas explodirem no ambiente. Aplausos para o presidente Fernando Henrique Cardoso, em seu finíssimo terno de linho branco, que repetia aos presentes: "não vai haver cortes na área social. Mandei a equipe econômica restabelecer as verbas de R$ 139 milhões para os programas de combate aos problemas sociais".
O coelhinho não se conteve. Gritou três hip-hurras, deu cambalhotas no ar, e pôs-se a cantar: "País globalizado é outra coisa-a-a-a, país globalizado é outra coisa-a-a" - utilizando, é claro, o som do Hino Nacional dos Estados Unidos da América do Norte. O coelhinho poliglota, certamente, não lê jornais brasileiros - não porque não domine o idioma português, mas porque abomina tudo que é tipicamente nacional, não-globalizado.
"Pobreza pura", diria olhando para o seu umbigo. Se lesse jornais, teria visto uma reportagem publicada poucos dias antes da festa dos solidários-com-os-pobres. Mais exatamente, na segunda-feira, 22 de março. Título: "Estiagem aumenta a mortalidade infantil no Nordeste". O título está errado. Por quê? O texto da reportagem diz que no interior de Alagoas a mortalidade infantil chegou a 425 crianças mortas para cada 1.000 em janeiro último. E ficou nos 370 por 1.000 em fevereiro.
O que esses números significam? É simples: o próprio texto explica que o recorde mundial em mortalidade era de Níger, na África devastada pelas guerras civis, com multidões de refugiados sem ter o que comer, em regiões ainda por cima devastadas pela seca. Qual o índice de Níger, recordista mundial? São 200 crianças mortas em 1.000. E no Nordeste, neste Brasil globalizado da Comunidade Solidária? O dobro. Mais de 400 por 1.000. A causa? A seca? Não. O texto do repórter diz o que o título busca esconder: em janeiro, o governo suspendeu o envio das cestas básicas para a região. Em fevereiro, a suspensão continuou. Só a 10 de março as cestas chegaram. Isto é, 70 dias sem comida, numa região já miserável, ainda por cima destroçada pela seca.
Só isso? Não. Tem mais. Além da suspensão da cesta básica, o governo suspendeu também o pagamento dos flagelados que trabalhavam nas frentes de trabalho. Certamente, os perfumados, cheirosos, elegantes conselheiros do Comunidade Solidária não sabiam e nem querem saber de nada disso.
"Disgusting". Fome, miséria, crianças morrendo, literalmente, como moscas? "Disgusting". A não ser, é claro, para servir de motivo a fotos maravilhosas de fotógrafos geniais. Já pensou que impacto? Que vernissage de arromba de uma exposição com elas? Wonderful. Ou marveilleux. Parece Nu-Iorque.
O coelhinho se entusiasmou com os R$ 139 milhões anunciados pelo presidente da República. O coelhinho certamente não viu também a entrevista do secretário do Tesouro, poucos dias antes, anunciando que o governo conseguira reduzir em nada menos de R$ 1,8 bilhão os gastos de "custeio e investimentos" em janeiro e fevereiro, obtendo um saldo positivo (o tal de "superávit primário" combinado com o FMI). Dois bilhões de reais em dois meses, R$ 1 bilhão por mês.
Aplausos, comentários entusiasmados nos meios de comunicação, círculos empresariais, arraiais ligados aos coronéis da Bahia e Nordeste/Goiás. Ora, acontece que a única área em que o governo pode "cortar" é exatamente em "custeio", isto é, as verbas destinadas aos diversos ministérios -inclusive para cestas básicas, compra de remédios, manutenção de frentes de trabalho, bolsas de estudo, funcionamento de hospitais. Não só no Nordeste. No país todo. É aí que o governo está "cortando", inutilmente - porque vai gastar R$ 130 bilhões, tanto quanto de todo o Orçamento (tirando-se a Previdência) ao pagamento de juros. "Restabelecer" R$ 139 milhões (com a letra "m"), como diz o presidente da República, é uma gota d'água diante dos cortes de R$ 1 bi por mês. Os meios de comunicação escondem. Evitam que a sociedade saiba o preço verdadeiro do acordo com os banqueiros internacionais, protegidos pelo FMI. Evitam, para que a sociedade não discuta outros caminhos, como a moratória.
Em telefonema ao colunista Clóvis Rossi, segundo narrativa do próprio em uma coluna recente, o ministro Paulo Renato disse que "há jornalistas tendo orgasmos com a crise" (do Real). Estranho raciocínio. Afinal, 95% dos jornalistas, ou mais, foram cúmplices no clima de falso otimismo sobre a "política econômica" do governo. Não iriam comemorar seu próprio desmascaramento, agora. E os 5% que criticaram não têm "orgasmos" com o genocídio que está sendo praticado no Brasil. Na verdade, sentem repulsa diante do comportamento dos globalizados de todos os naipes. E cúmplices de genocídios.
Ah, sim. O coelhinho? Foi avistado pelos solidários-festeiros -perfumados, elegantes, cosmopolitas-, e voltou para casa feliz, sob gritos festivos: Olha que belezinha, o coelhinho da Páscoa. Olha que... Tlic-tlic-tlic.
That is the new Brazil!!


Aloysio Biondi, 62, é jornalista econômico. Foi editor de Economia da Folha. Escreve aos sábados no caderno Dinheiro.


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