São Paulo, quarta-feira, 03 de maio de 2006

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ANÁLISE

Morales não quer deixar peteca cair

NEWTON CARLOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

O presidente Evo Morales, da Bolivia, tem experimentado remédios amargos parecidos com os usados por ele quando comandava a oposição em barricadas nas ruas. É o país da mobilização dos chamados movimentos sociais, e a observação é da "Latin American Newsletter".
Os empregados do Lloyd Aereo Boliviano, uma empresa privatizada, provocaram um dos mais sérios confrontos. Mas também foram feitas ou anunciadas greves no setor público, de professores, de funcionários de um precário sistema de saúde e da federação de transportes coletivos, de cunho empresarial, o que não impediu que produzissem sinais de instabilidade.
Pelo menos sete das dez maiores cidades do país viveram dias de tumulto. O pessoal do Lloyd Aereo Boliviano bloqueou ruas e acessos aos principais aeroportos, exigindo a recompra da empresa pelo Estado. Morales chegou a colocar militares de prontidão, disposto a garantir o funcionamento do transporte aéreo. A publicação londrina diz que Morales conseguiu, até agora, sustentar um curso entre manter a ordem e considerar exigências. O vice-presidente, Alvario Garcia Linera, um ex-guerrilheiro, saudou o fato de que estão quietas as organizações que participaram dos grandes protestos de 2003. Manifestou "compreensão" diante de "reivindicações há tanto tempo reprimidas", mas criticou as ações numa hora de mudanças, de inicio de um governo disposto a ouvir e negociar.
Talvez receio que essa intenção, ontem como hoje envolvida em dificuldades, não seja suficiente para desmobilizar os movimentos sociais. O presidente Tabaré Vasquez, do Uruguai, avisou às esquerdas latino-americanas que "o contato com o governo pode fazer com que se perca muito dos sonhos". Ele próprio se viu obrigado a encarar manifestações de desilusão. O surto nacionalista na Bolivia, agora impulsionado por decisões de Estado, depois de passados os discursos de campanha eleitoral, teria a ver com uma estratégia de conter possíveis desencantos e evitar desgastes prematuros? O candidato Morales prometeu "resgatar as teses da revolução de 1952".
Há 54 anos, a Bolívia foi cenário da segunda revolução social mais importante do continente. O México veio primeiro. Milícias operárias, constituídas sobretudo por mineiros, tiveram atuação decisiva em três dias e três noites de combate e derrota do Exército. O candidato roubado em eleições, Paz Estenssoro, e seu Movimento Nacional Revolucionário assumiram o poder em parceria com a Central Operária Boliviana e com duplo objetivo, nacionalização das minas de estanho e reforma agrária, o que foi feito. Mas sobreveio a "restauração". Num segundo mandato, entre 1960 e 1964, movido por ambições continuistas, Estenssoro reconstruiu o Exército, com ajuda americana, e acabou vítima de uma nova geração de generais, inclusive alguns nacionalistas.
Um deles tomou a "Gulf Oil". Outro, em associação com a central operária, aceitou a criação de uma "assembléia popular" com retrato de Lênin na parede. A "restauração" retomou seu curso com a ditadura do general Hugo Banzer, depois de negócios de militares de altas patentes e moradia em palácio com máfias de drogas. O velho Estenssoro iniciou um terceiro mandato em 1985. "As causas da crise estão no pseudo-socialismo de 1952", proclamava a Confederação dos Empresários, disposta a conseguir com que se completasse a ruptura com o passado revolucionário.
Foi o que fez Sanches de Lozada, primeiro como ministro das Finanças de Estenssoro e depois como presidente, afinal derrubado pelo povo rebelado nas ruas, com Morales na linha de frente. Lozada vendeu a estatal de petróleo. Só ficou faltando o gás, no processo de privatizações, agora em marcha a ré. Houve a "guerra do gás" e lá estava Morales com sua promessa de "reativação" revolucionária. Em 1952. eram as minas de estanho, agora são gás e petróleo, talvez peças da necessidade sentida por Morales de não deixar a peteca cair.


O jornalista Newton Carlos é analista de questões internacionais


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