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São Paulo, quinta-feira, 03 de julho de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

A batalha apenas começou

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Se dependesse só de mim e dos meus impulsos obsessivos, escreveria hoje sobre a Alca outra vez. A verdade é que, desde a última quinta-feira, fiquei mais ou menos por conta desse assunto. Por conta mesmo, e não só padecendo subjetivamente.
Não quero, porém, perder os leitores que tenho. Ainda mais depois que o Elio Gaspari me disse que os brasileiros farão tudo contra ou pela Alca -menos ler sobre ela.
Mas não posso reclamar dos leitores, antes o contrário. Outro dia aconteceu-me um episódio singular. Estava com os meus papéis num bar na Oscar Freire, quando uma senhora que passava na rua me viu e veio falar comigo. Apertou a minha mão e disse-me, gentil e discreta, que gostava muito do meu trabalho e sempre dizia ao marido, um professor aposentado da Politécnica: "Esse poderia ser nosso filho".
Fiquei comovido. Não é todo dia que um sujeito, ainda mais economista, recebe um elogio desses! A senhora ainda disse (e a tristeza transparecia): "Nós não tivemos filhos", e retirou-se rapidamente antes que eu pudesse esboçar uma reação condigna. Não fiquei sabendo o seu nome nem pude agradecer direito.
Esses pequenos episódios provocam, às vezes, um impacto difícil de descrever. Mas basta talvez dizer que fui casado dez anos e também não tive filhos. Criou-se assim imediatamente um laço imaterial entre aquela leitora e eu. Espero que ela esteja me lendo hoje. Tenho mãe, e muito boa, mas ninguém, em sã consciência, dispensa uma mãe adicional.
Mas eu queria falar um pouco dos seis primeiros meses do governo Lula. Reina uma certa perplexidade, no Brasil e, mais ainda, no exterior. A correspondente de um jornal argentino me dizia ontem: "Na Argentina, ninguém sabe realmente o que pensar do novo governo brasileiro; as referências se perderam".
Ultimamente tenho me lembrado muito daquela frase do Tom Jobim: "O Brasil não é para principiantes". Mesmo o brasileiro escolado por décadas de Brasil fica, volta e meia, espantado com as reviravoltas que por aqui acontecem.
Entre o primeiro e o segundo turnos da eleição presidencial, estive em Washington para um debate com investidores sobre as perspectivas do Brasil. O clima era de pânico em relação a Lula e ao PT. Disse-lhes: "Lula não é um lobo em pele de cordeiro". Pelo tom dos debates que se seguiram, tive a impressão de que ninguém acreditou.
Na ocasião, acrescentei que não chegaria a dizer de Lula o que Winston Churchill disse certa vez a respeito do seu adversário político Clement Attlee, líder do Partido Trabalhista. Attlee estava prestes a chegar ao poder e fazia todos os ruídos tranquilizadores. Mesmo assim, muitos setores do establishment britânico proclamavam, alarmados: "É um lobo em pele de cordeiro!". Nada disso, comentou Churchill, "é um cordeiro em pele de cordeiro".
Hoje, depois de seis meses de governo, já não sei mais, sinceramente, se o comentário de Churchill não se aplica ao nosso Lula.
Cordeiro em pele de cordeiro! Digito a frase e já me vem uma hesitação. Um semestre não é nada, afinal. Quem sabe o presidente não se recupera ainda?
Depende um pouco de cada um de nós. Por exemplo: do nível de pressão que o governo receber dos brasileiros que querem a mudança e expressaram essa exigência nos últimos anos, inclusive nas eleições de 2002.
É intrigante a relação do establishment e dos meios conservadores com o governo Lula. Por um lado, elogiam (aliviados) a conversão dos novos governantes à ortodoxia econômica. Nos cantos mais improváveis do país, aparecem "neopetistas" dos mais variados e inesperados perfis. Recentemente, depois da duvidosa visita de Lula a Washington, esses setores comemoram ruidosamente a sua suposta capitulação à Alca (repare, leitor, que a Alca acabou entrando um pouco no artigo no fim das contas).
Por outro lado, muitos "neopetistas" fazem questão de desgastar o governo Lula, apontando insistentemente as suas incoerências, o seu oportunismo e a infidelidade a seu programa econômico e às promessas eleitorais. Alcançam, assim, vários objetivos ao mesmo tempo. Desgastam um governo que não é, afinal, o governo dos sonhos dos donos do poder. Desmobilizam a sociedade, espalhando a sensação de que a luta acabou, que o governo se entregou etc. E, de quebra, desmoralizam o ideário da mudança econômica e social.
Se o governo Lula for definitivamente domesticado, o pensamento crítico e as forças que lutam pela transformação e autonomia do país correm um risco que não pode ser desprezado: o de passarem a ser vistos como sonhadores do impossível, quixotes incuráveis, vendedores de ilusões, que, por burrice, teimosia ou romantismo, não enxergam a inevitabilidade do caminho "único".
A esses temos que responder como aquele comandante naval que, em célebre episódio da guerra de Independência dos EUA, reagiu nos seguintes termos a uma exigência de rendição dos ingleses:
"The battle has just begun".


Paulo Nogueira Batista Jr., 48, economista, pesquisador visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP e professor da FGV-EAESP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A Economia como Ela É..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002).

E-mail - pnbjr@attglobal.net


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