São Paulo, domingo, 03 de julho de 2005

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Mark Twain e a corrupção

JOSÉ ALEXANDRE SCHEINKMAN

O romance "The Gilded Age: A Tale of Today" descreve uma sociedade americana que, a despeito da sua aparência de grande promessa e riqueza, é contaminada por corrupção e escândalo. Não é um dos melhores livros de Mark Twain, mas a expressão "Gilded Age", que pode ser talvez traduzida por "A Idade Dourada" -o dourado refere-se ao "pintado a ouro", e não ao ouro propriamente dito-, foi apropriada por historiadores para descrever toda uma época da história dos EUA, que vai aproximadamente de 1865 até o fim do século 19.
Esse período é caracterizado pela expansão do poder dos governos estaduais e federal, que distribuíram terras, subsidiaram ferrovias, protegeram a indústria então nascente e criaram barreiras à imigração. Alguns observadores citam o protecionismo e a "política industrial" americana de então como exemplos para o Brasil atual, mas a análise econômica não suporta essa tese. O setor ferroviário foi o mais beneficiado por subsídios e distribuição gratuita de terras, mas o trabalho do professor de Chicago e Prêmio Nobel de economia Robert Fogel mostrou que o impacto das ferrovias no crescimento americano foi muito menor do que os historiadores tradicionais imaginavam.
Algumas medidas tomadas na segunda metade do século 19, como a democratização da posse da terra, tiveram um impacto social positivo e contribuíram para o crescimento, mas a verdade é que os EUA cresceram menos durante a "Gilded Age" do que em períodos posteriores, quando tarifas foram cortadas, subsídios desapareceram e a lei antitruste diminuiu a capacidade das grandes companhias de manipular preços, o governo ou o Judiciário.
Não é coincidência que grandes fortunas foram criadas e que a corrupção era generalizada durante a "Gilded Age". Os Estados Unidos não eram mais o país descrito por Tocqueville em 1841, quando a desigualdade era pequena, e a corrupção, quase ausente. Um episódio emblemático da época envolveu o Credit Mobilier, um empreendimento criado para construir a ferrovia transcontinental Union Pacific. O Congresso americano aprovou subsídios para a Union Pacific, e o Credit Mobilier cobrava o dobro do custo da construção. Em 1872, o jornal "New York Sun" revelou o esquema de superfaturamento e que membros da Câmara dos Deputados possuíam ações do Credit Mobilier. Sob pressão do público, foi criada uma CPI, que acabou acusando vários políticos, inclusive o vice-presidente dos EUA e ex-presidente da Câmara Schuyler Colfax. A CPI recomendou a cassação de um deputado que era simultaneamente conselheiro do Credit Mobilier, mas o plenário se contentou com um voto de censura. Afinal, o deputado era membro da maioria republicana.
Os escândalos da "Gilded Age" acabaram causando uma forte reação. Jornalistas e intelectuais denunciaram a corrupção existente no eixo políticos-grandes empresas. Por sua vez, esses artigos e livros indignaram a parcela cada vez maior do público americano que era razoavelmente educada, aumentando o apoio para os políticos progressistas que defenderam a passagem de leis antitruste, a regulamentação dos monopólios naturais, menores tarifas de importação, a criação do Imposto de Renda e combateram as negociatas entre políticos e empresários. O suborno não desapareceu, mas os Estados Unidos de (Ted) Roosevelt e Wilson foram muito menos corruptos do que o país presidido por Ulysses Grant.
Há muitas diferenças entre os EUA do século 19 e o Brasil de hoje, mas o sucesso daquela nação em reformar as suas instituições e a cultura política mostra que a nossa realidade atual não é a única possível.


José Alexandre Scheinkman, 57, professor de economia na Universidade Princeton (EUA) escreve quinzenalmente aos domingos nesta coluna.

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jascheinkman@hotmail.com


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