São Paulo, sexta-feira, 04 de janeiro de 2002

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OPINIÃO ECONÔMICA

Argentina: a maior derrota do ultraliberalismo

LUIZ CARLOS MENDONÇA DE BARROS

O novo presidente da Argentina decretou, na cerimônia de sua posse, o fim da experiência neoliberal dos últimos dez anos no país. Foi aplaudido pelas lideranças políticas mais importantes presentes, inclusive por expressivas vozes da UCR. O partido do ex-presidente De la Rúa, agora parte de um governo de coalizão nacional, juntando-se dessa forma aos peronistas na crítica do sistema monetário e cambial que prevaleceu no país por mais de dez anos. Falta agora contar ao povo duas histórias: por que a crítica não foi feita antes da débâcle total e como será feita a transição.
Para um analista das coisas da economia e da sociedade, o drama que vive nosso vizinho é um prato cheio. Tenho a impressão de que poderia escrever mil colunas sobre os erros destes últimos dez anos no país do tango e da milonga. Por isso vou continuar hoje a dividir com o leitor da Folha algumas das observações que me vêm à mente neste momento. Desculpem-me a desordem das idéias, mas elas fluem aos borbotões toda vez que sento para refletir sobre a experiência da Argentina nesses últimos anos. Quando começo a escrever tenho um certo plano organizado na cabeça, mas ele acaba sendo modificado pela força de meus sentimentos. Revolta, ansiedade, surpresa e uma certa arrogância são alguns deles.
Partilho com meu irmão José Roberto de uma revolta imensa com os economistas, nossos colegas de profissão, e sua capacidade de levar sociedades inteiras ao desespero com suas experiências econômicas irresponsáveis. No final, sempre abandonam o barco que está indo a pique alegando falta de vontade política do governo e de espírito de sacrifício por parte da população. Aliás, nossa imprensa que defende as idéias de Cavallo já escolheu esse caminho para justificar a catástrofe atual. O mentor econômico da governadora Roseana Sarney, candidata à Presidência da República, produziu uma pérola ao dizer que o modelo argentino é tecnicamente perfeito embora exija algum sacrifício da sociedade. Nesse sentido, Domingo Cavallo até inovou um pouco ao jogar a culpa de seus infortúnios nas costas do Brasil. Mesmo aqui no Brasil temos casos semelhantes a analisar. No Plano Cruzado, em 1986, a sociedade brasileira foi cobaia de uma experiência de laboratório com resultados muito ruins. Felizmente do ventre de seu fracasso nasceu o feto bem-vindo do Plano Real. No Plano Collor, mais uma vez, fomos vítimas de tentativas extravagantes de políticas de estabilização criadas de improviso. Mesmo o exitoso Plano Real correu um risco muito grande pela experiência do câmbio fixo e de uma abertura meio desastrada de nosso mercado ao comércio externo. Felizmente, um pequeno grupo de economistas do governo, por meio de uma guerra de guerrilha contra os ultraliberais que cercavam o presidente, manteve a proposta desse grupo sobre pressão e evitou um desastre maior do que a flutuação do real em janeiro de 1999.
Agora mesmo comemoramos o primeiro ano em que, no mandato do presidente brasileiro, nossa balança comercial apresentou um saldo positivo. Os déficits comerciais em 1995 e 1996 foram recebidos à época pelo núcleo duro da equipe econômica de FHC como o limiar de uma nova era. A racionalidade e a eficiência se imporiam a uma estrutura vetusta e cartorial de produção interna financiado pelo nirvana do mercado internacional de capitais. Diferentemente da Argentina, este delírio ultraliberal não passou de um sonho impossível e vivemos hoje uma situação favorável que, a fusão do que correto e bom existe no pensamento da economia de mercado com a realidade cultural de nossa sociedade, permite.
Certamente, o colapso do peso valendo um dólar vai representar uma das grandes derrotas do pensamento ultraliberal nos últimos anos. Depois da crise mexicana em 1995, a experiência argentina passou a ser grande aposta do que se convencionou chamar de Consenso de Washington. Com o seu fim, estaremos livres por algum tempo -pois podem estar certos os leitores que mais alguns anos elas estarão de volta- dessas idéias trágicas. Mas corremos agora um outro perigo aqui na nossa complicada América Latina: a volta da irresponsabilidade fiscal e monetária com também o fechamento das economias nacionais como peças básicas de política Econômica. Em uma região em que os movimentos políticos se movem como pêndulos, passando de um extremo ao outro, essa possibilidade é real. A Argentina pode mergulhar em um abismo sem fim se isso acontecer nos próximos meses. No Brasil, na campanha eleitoral de outubro próximo, vamos enfrentar situação semelhante. O programa econômico do PT deve ter as cores terríveis se for feita uma leitura errada da crise da Argentina. A moratória de nossa dívida externa, o fechamento da economia nos moldes do mercado agrícola europeu e a proibição das exportações agrícolas são idéias que já saíram da boca do candidato Lula. Imaginem agora!
Felizmente, a política econômica do governo FHC vem mudando ao longo dos últimos dois anos e pode servir como um contraponto importante ao pêndulo que começa a mover-se novamente. O presidente brasileiro tem uma capacidade extraordinária de ler os fatos históricos e isso vai nos ajudar muito neste momento. Ele vai entender muito bem o que está acontecendo na Argentina. A menos de um pesadelo ou outro sobre o que poderá ter sobre o que poderia ter acontecido a nós e a ele -caso tivesse seguido até o fim as idéias de Gustavo Franco, ele vai continuar no seu caminho de fortalecimento do setor produtivo e da redução de nossa dependência externa via aumento das exportações. Seguindo nesse sentido, o Brasil estará dando um exemplo importante para todos os paises da América Latina.


Luiz Carlos Mendonça de Barros, 58, engenheiro e economista, é sócio e editor do site de economia e política Primeira Leitura. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações (governo FHC).

Internet: www.primeiraleitura.com.br

E-mail: lcmb2@terra.com.br



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