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RUBENS RICUPERO
A insurreição da bondade
Abbé Pierre distribuiu a herança aos pobres e adotou a máxima franciscana de "servir primeiro os que mais sofrem"
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ELEITO UM dos três maiores
franceses de todos os tempos,
ao lado de Pasteur e de Gaulle,
o Abbé Pierre encarnou as duas paixões da alma da França: a fraternidade e a insubmissão.
Escrevo no aniversário do seu
apelo de 1º de fevereiro de 1954,
num inverno siberiano de -15C em
Paris: "Socorro, meus amigos! Uma
mulher acaba de morrer de frio às 3h
no boulevard Sébastopol, segurando
na mão sua notificação de despejo".
De acordo com o obituarista do
"Monde", diante da voz emocionada
no programa de rádio do meio-dia,
"a França da hora do almoço se paralisa, com o garfo no ar". O apelo
desencadeia a "insurreição da bondade", jamais vista, antes ou depois.
Vinte mil pessoas se mobilizam, o
ator Michel Simon dá um envelope
com 1 milhão de francos, o cantor
Charles Trenet doa 1,75 milhão de
francos, Charlie Chaplin chama o
Abbé Pierre ao hotel e lhe entrega 2
milhões de francos em espécie, dizendo: "Eles pertencem ao vagabundo que fui e simbolizei".
A onda se propagou até o longínquo Brasil. Poucos meses depois, um
grupo de estudantes de 18 anos, inspirados pela ação de dom Hélder Câmara nas favelas do Rio de Janeiro e pelo exemplo do Abbé Pierre, tentávamos fazer alguma coisa parecida
numa favela do Alto da Mooca. Seu
primeiro livro narrando o início dos
Companheiros de Emaús era nosso
catecismo.
Num país de divisões e rancores,
foi uma rara unanimidade. Santo do
nosso tempo, não tinha nada da
imagem adocicada dos "santinhos"
devotos. Era homem de ação, membro da Resistência, preso e evadido
duas vezes. Seu primeiro companheiro foi um ex-presidiário que
tentara suicidar-se. "Não tenho nada para lhe dar. Você não tem nada a
perder porque quer morrer. Dê-me
então sua ajuda para ajudarmos os
outros." Nasceu assim a Comunidade de Emaús. Mais tarde, diria esse
primeiro recrutado: "O que me faltava não era apenas do que viver,
eram razões para querer viver".
O grupo pioneiro -ex-criminosos, prostitutas, alcoólatras- teve
início tumultuoso. Aos poucos, encontrou a vocação: construir moradias para os sem-casa, mesmo fora
ou contra a lei, invadindo, se preciso,
terrenos ou imóveis desocupados.
Abbé Pierre criou o "princípio da insolência comedida": espicaçar todos
os governos, sem chegar à agressividade da ruptura. Rejeitava o assistencialismo que vicia e degrada.
Seu lema era: "Os homens de pé". Só
aceitava quem se dispusesse a trabalhar além da subsistência pessoal.
Franzino e frágil como dom Hélder, Madre Teresa, Gandhi, espanta
que tivesse chegado aos 94 anos.
Doente dos pulmões, teve a toda hora de interromper os estudos e foi
obrigado a deixar a rigorosa vida de
capuchinho, que levou por oito anos.
Na campanha heróica do inverno de
1954, dormia duas horas por noite e
quase morreu de esgotamento. Passou 22 meses no hospital e sofreu
seis operações para sobreviver.
Sua força vinha da fé. Aos 15 anos,
rezava na basílica de Assis quando
uma "exaltação indescritível" decidiu-o a seguir São Francisco, como
ele filho de rico negociante de tecidos. Distribuiu a herança aos pobres
e adotou a máxima franciscana de
"servir primeiro os que mais sofrem". Nisso, era fiel ao pai, que dedicava as manhãs de domingo a lavar e barbear os indigentes e soube
educar os filhos para a generosidade.
Espírito livre, crítico do celibato
dos padres, partidário da ordenação
das mulheres, o futuro papa João 23,
núncio em Paris, chamava-o "meu
carvão em brasa". Confessou ter violado o voto de castidade, o mais doloroso de todos os votos, segundo
ele, por obrigar a renunciar à ternura de uma mulher. Penitenciou-se
do erro do apoio que, por amizade,
dera ao negacionista Roger Garaudy.
Tentou destruir o próprio mito e
denunciou suas fraquezas e faltas
pessoais. Ninguém se impressionou.
Santo e pecador, como se define a
igreja de Cristo, o que nele conta é a
caridade até o heroísmo. Porque
muito amou, todo o resto lhe foi perdoado. Por isso, seu mais belo epitáfio foi a frase de Robert Solé, no "Monde": "Do Abbé Pierre, esta
França descatolicizada só deseja
conservar na memória a fé, a esperança e a caridade".
RUBENS RICUPERO , 69, diretor da Faculdade de Economia
da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos,
nesta coluna.
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