São Paulo, terça-feira, 04 de junho de 2002

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OPINIÃO ECONÔMICA

O motor afogou

BENJAMIN STEINBRUCH

Era quase cômico ter um automóvel a álcool 20 anos atrás, no início do Proálcool (Programa Nacional do Álcool). Lembro-me de um amigo que comprou um carro zerinho por volta de março de 1980. Quando o inverno chegava, ele tinha enormes dificuldades para fazer o motor funcionar pela manhã. No painel, havia um botão para ajudar o motorista a dar a partida com temperatura fria. Ao apertar esse botão, injetava-se gasolina no carburador. Assim, o motor deveria funcionar com gasolina até esquentar, para então passar a consumir álcool. Mas a bombinha de gasolina normalmente entupia ou injetava mais combustível do que o necessário, o que "afogava" o motor.
Meu amigo começou a estacionar o carro em uma ladeira à noite, para tentar dar a partida no tranco pela manhã. A estratégia também não dava muito certo. Mesmo descendo a ladeira, o motor muitas vezes recusava-se a "pegar". Então ele teve a idéia brilhante de comprar uma bisnaguinha de plástico. Antes de dar a partida, colocava luvas, abria a tampa do carburador e esguichava gasolina com a bisnaga na medida certa para não "afogar" o motor. Aí então o motor funcionava.
Foi assim a introdução do carro a álcool no Brasil. Mas isso faz parte do folclore. Há muito tempo as montadoras já encontraram solução técnica para o problema e o automóvel a álcool passou a ser tecnologicamente tão confiável quanto os a gasolina.
Enquanto funcionou, o Proálcool surpreendeu o mundo. Em 1986, no auge do programa, as montadoras brasileiras produziram 700 mil carros a álcool, quase 70% do número total fabricado.
O petróleo estava em alta no mercado internacional e o combustível brasileiro representava uma alternativa viável, barata e ecologicamente melhor que a gasolina. Mas vieram os problemas. O preço do petróleo, que atualizado para valores de hoje havia passado de US$ 50 o barril, começou a baixar. Internamente, o programa tinha defeitos de origem, como o controle governamental da produção e, principalmente, os subsídios oficiais -estima-se que o governo tenha concedido cerca de US$ 11 bilhões em incentivos.
O tiro que quase matou o carro a álcool foi em 1989, quando, por falta de oferta do combustível, os motoristas passaram a enfrentar filas enormes para encher os tanques. Sem a confiança do consumidor, a produção de veículos a álcool foi diminuindo ano a ano, até chegar a apenas mil unidades em 1997.
Apesar disso tudo, o carro a álcool ainda não morreu. Está moribundo. A frota nacional conta ainda com cerca de 3 milhões de veículos, 15% do total. Todos os candidatos a presidente têm feito declarações a favor da retomada do Proálcool. O próprio governo, de olho nos preços do petróleo, decidiu retomá-lo, por iniciativa do Ministério do Desenvolvimento. Ainda não existe um plano, mas há uma coisa muito importante: consenso a favor dele.
O novo Proálcool deveria, obviamente, evitar os erros do passado: subsídios, cotas de produção, controle de preços e abastecimento irregular. A maior dificuldade é a do abastecimento. A produção de álcool é muito dependente dos preços do açúcar. Quando o mercado internacional está favorável ao açúcar, a tendência natural das usinas é reduzir a produção do álcool para produzir mais açúcar.
As usinas brasileiras são hoje altamente competitivas, responsáveis pela produção de 33% do açúcar mundial. Produzem 11,5 bilhões de litros de álcool por ano e têm capacidade para chegar a 16 bilhões. Além de barato, o álcool brasileiro é um combustível renovável e menos poluente do que a gasolina. Nos EUA, por questões ambientais, o Congresso aprovou há três meses a adição de álcool à gasolina, o que será feito de forma gradativa nos 50 Estados americanos.
O ideal seria globalizar o novo Proálcool, ou seja, voltá-lo também para o mercado externo, embora os subsídios dos demais países produtores sejam um grande obstáculo às exportações. De qualquer forma, o aumento do consumo interno desse combustível já traria um alívio importantíssimo às contas externas do país. Com os preços do petróleo no nível atual, o Brasil deve gastar neste ano de US$ 5 bilhões a US$ 6 bilhões com a importação dessa matéria-prima.
Vivemos dizendo que o Brasil precisa estimular o desenvolvimento de soluções genuinamente brasileiras, de tecnologias nacionais e de setores internacionalmente competitivos. Está aí uma oportunidade: a cana.


Benjamin Steinbruch, 47, empresário, é presidente do conselho de administração da Companhia Siderúrgica Nacional.
E-mail - bvictoria@psi.com.br


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