São Paulo, domingo, 04 de agosto de 2002

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ARTIGO

Por que a crise dos EUA não deve virar uma depressão

JEFFREY SACHS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os bilhões de pessoas no mundo que não investem nas Bolsas dos EUA têm uma grande preocupação sobre a queda dos preços das ações americanas. A perfuração do boom do mercado provocará um desmoronamento da economia americana que se espalhará para o resto do mundo? Essa pergunta é vital porque muitas bolhas financeiras realmente se seguiram de um colapso na produção e no emprego.
Só podemos especular sobre a resposta, mas meu palpite é que os EUA escaparão com uma modesta desaceleração. Meu otimismo pode parecer deslocado quando o mercado de ações cai quase todos os dias e quando historicamente outros países viram os colapsos das Bolsas provocarem colapsos econômicos.
Também parece deslocado diante da fraca liderança econômica americana. O presidente Bush imprudentemente colocou uma redução de impostos para os ricos acima de qualquer outra preocupação econômica. Ele é um protecionista, e não um defensor do livre comércio. Tanto Bush quanto o vice-presidente Cheney estão sendo investigados sobre possíveis desvios empresariais quando eram executivos.
Então por que sou moderadamente otimista? Um exame das conexões entre o mercado de ações e o resto da economia talvez explique isso.
Durante um boom das Bolsas, quando os preços das ações são elevados pela forte confiança do investidor, o mercado ajuda a criar um boom econômico geral. Os consumidores se sentem mais ricos e compram mais. Esses mesmos consumidores fazem empréstimos com base em sua riqueza em ações, para comprar casas, carros e outros produtos caros.
Além disso, as companhias acham fácil emprestar ou levantar novos capitais para investimentos, assim criando um boom de investimentos empresariais. Os bancos emprestam em condições fáceis para famílias e empresas que possuem ações valorizadas, acreditando que a riqueza na Bolsa é uma boa garantia. Para participar desse êxito, os investidores estrangeiros despejam dinheiro.
Quando termina um boom nas Bolsas e os preços caem, o consumo e o investimento também caem, os investidores estrangeiros fogem, os empréstimos bancários ficam apertados. Esses fatores reforçam a desaceleração econômica. É provável que os EUA experimentem alguma desaceleração, como ocorreu na recessão branda dos últimos dois anos.
Mas duas forças podem transformar uma desaceleração branda em uma grave recessão ou mesmo depressão.
O declínio das Bolsas pode levar a uma crise bancária generalizada, como ocorreu no Japão, no México e mais recentemente na Argentina. Os bancos podem achar que não serão pagos durante uma crise da Bolsa. Os bancos podem então enfrentar a falência e restringir novos empréstimos. Em casos extremos, os correntistas temem pela segurança de seus depósitos e fogem dos bancos. Esse pânico dos correntistas aumenta a crise bancária; os investidores estrangeiros podem desaparecer subitamente, enquanto as visões de riqueza fácil se transformam em pânico financeiro. De repente o país cai em uma crise de balanço de pagamentos, em que não pode pagar suas dívidas externas. Isso perturba comércio e produção.
Meu otimismo moderado vem de minha crença em que os EUA vão evitar a crise bancária, assim como a crise do balanço de pagamentos. Alguns bancos americanos provavelmente terão grandes prejuízos devido ao colapso da Bolsa. Mas nada disso tem probabilidade de se transformar numa crise generalizada.
Os bancos americanos ainda parecem bem capitalizados, razoavelmente bem supervisionados e com níveis apenas moderados de empréstimos não pagos. Quanto às dívidas com credores estrangeiros, a boa notícia é que os EUA lhes devem dinheiro em dólares, e não em outra moeda.
Os EUA não vão "ficar sem dólares" para o serviço de suas dívidas externas, assim como a Argentina ou a Coréia ficaram sem os dólares necessários para pagar aos credores estrangeiros na última década. O dólar pode portanto se desvalorizar quando os investidores fugirem dos Estados Unidos, mas provavelmente sem provocar uma crise mais séria.
Lembre-se também de que os EUA podem usar a política monetária expansionista para contrabalançar, pelo menos em parte, qualquer desaceleração que ocorra. O Fed pode continuar reduzindo as taxas de juros, se necessário. Esses cortes provavelmente não evitarão que ocorra uma desaceleração, mas podem ajudar a evitar um colapso econômico geral.
A quebra da Bolsa mais famosa da história, seguida de um colapso econômico, começou em 1929. O mercado americano despencou em outubro de 1929 e os Estados Unidos e grande parte do mundo então caíram numa Grande Depressão. Mas essa época famosa e desastrosa demonstra os princípios que estou salientando hoje.
A principal razão para a Grande Depressão dos anos 30 não foi o declínio das Bolsas, mas o colapso do sistema bancário americano no período 1930-33. Como não havia garantia de depósitos nos EUA naquela época, os correntistas entraram em pânico quando alguns bancos começaram a falir. Esse pânico provocou uma falência generalizada dos bancos.
Meu otimismo moderado não deve ocultar minha tristeza diante da fraca administração econômica dos EUA. Os imprudentes cortes de impostos e as políticas comerciais protecionistas do governo Bush devem ser invertidos. Os abusos corporativos devem ser expostos e punidos. Mas afinal a economia americana é produtiva, flexível e altamente inovadora, e provavelmente forte o bastante para suportar a administração econômica pública e privada irresponsável dos últimos anos.


Jeffrey Sachs é diretor do Centro para Desenvolvimento Internacional na Universidade Harvard (EUA).


Tradução de Luiz Roberto Gonçalves

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