São Paulo, quarta-feira, 04 de setembro de 2002

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OPINIÃO ECONÔMICA

Eleições 2002: previdência inteligente

PAULO RABELLO DE CASTRO

No Brasil, a previdência social não é inteligente: é imprevidente. No setor privado, chamado de "regime geral", é representada pelo INSS, que faz a repartição imediata dos recursos arrecadados dos contribuintes para distribuir, mês a mês, aos aposentados e pensionistas. O INSS não tem nenhuma reserva financeira, nada é "poupado" para o futuro. O déficit anual do INSS alcança cerca de 1% do PIB. Mas no governo o outro regime "especial" é bem pior. As contribuições não chegam a cobrir senão uma pequena parte do total pago em benefícios. Cerca de 960 mil beneficiários do regime "especial" consomem algo como R$ 56 bilhões por ano.
Portanto são dois sistemas paralelos: um para o setor privado em geral (INSS), mas regido pelo governo federal, e um segundo, público, que verte benefícios para funcionários do próprio governo, nos seus três níveis. No setor privado, o benefício médio é baixo, cerca de R$ 350 por beneficiário por mês. No setor público, alcança cerca de R$ 4.800 por pessoa. Os aposentados do governo ganham, em média, 14 vezes mais, e não estão limitados ao teto da aposentadoria do INSS.
Há diversos problemas no sistema previdenciário brasileiro, todos graves, mas abordaremos quatro aspectos:
1) é um sistema deficitário e explosivo, ou seja, a cada ano o déficit será maior, condenando o futuro de quem confia nele (já bastaria esse defeito, mas tem mais);
2) o participante da previdência social não "enxerga" suas contribuições mensais, pois os depósitos não são lançados em contas individuais; são tratados como caixa único na contabilidade do INSS e do Tesouro Nacional;
3) a desigualdade de tratamento previdenciário é flagrante entre a "turma" do INSS e a "turma" empregada no governo;
4) como o participante não "enxerga" suas contribuições, ninguém pensa a previdência social como poupança, mas como um "tempo corrido" até o direito à aposentadoria (é a mentalidade do "quanto falta?" em vez do "quanto tenho?").
Para fazer omelete, é preciso quebrar ovos. Impossível fazer de outro jeito. Como o governo FHC não quis quebrar os "ovos" dos privilégios e distorções das duas previdências, pôs panos quentes no déficit explosivo criando mecanismos de retardo e postergação do problema (o "fator previdenciário", entre outras medidas). Quando quis passar a fazer omelete, cobrando dos inativos do setor público uma parcela de contribuição, a reação foi fortíssima, tendo sido repudiada no Congresso.
Entende-se a reação de qualquer um que se sinta prejudicado por uma mudança na "regra do jogo" previdenciário, principalmente se as propostas do governo não prometem mudar o sistema. Para a sociedade aceitar novos sacrifícios, só com uma idéia clara de mudança. O governo FHC pecou por nunca haver mostrado que suas propostas trariam benefícios duradouros. Aliás, esse não era mesmo o caso.
Por que essa idéia de mudança duradoura é, assim, tão crucial? A resposta está em nosso artigo anterior, o primeiro da série, que mostra a necessidade de se alcançar, logo no início do próximo governo, uma vitória decisiva contra a "gastança" pública, o desperdício e o déficit, ou seja, cortar a diferença entre o que se gasta hoje e o que se consegue arrecadar da sociedade. O que está em jogo é a percepção do futuro.
Para ganhar essa guerra, o próximo governo precisa deixar claro para o "mercado" que não continuará tomando tanto dinheiro emprestado, condição essencial para os juros caírem e, até por isso, a despesa do próprio governo (com juros) também recuar. Para isso, algumas contas de gastos gigantes precisam ser revistas, sendo a da previdência (INSS e Tesouro) a maior delas, e a mais deficitária.
Para a roda do crescimento econômico sair do atoleiro dos juros altos, a chave é buscar um sistema previdenciário mais inteligente e menos gastador.
Em que ponto estamos dessa discussão? Atrasados. Os candidatos presidenciáveis estão apenas esboçando saídas, pesquisadas por suas assessorias. Já sabem que os déficits previdenciários são grandes e crescentes. Já sabem que um sistema estimulador de "poupanças individuais" seria, em tese, melhor para o crescimento do país já que, no atual, ninguém enxerga o que, de fato, se poupa. Compreendem também que é injusto ter duas previdências, sendo a do governo tão privilegiada em relação à do regime geral (INSS).
Esse reconhecimento é importante para começar, mas não ajuda muito a alcançar uma proposta firme e de entendimento geral. Os críticos da mudança (os que preferem que todos fiquemos quietos e conformados até o Juízo Final) alegam que o governo não tem recursos para bancar a evolução do atual sistema rumo à sua capitalização, ou seja, aquele sistema em que os novos participantes acumulariam suas próprias aposentadorias.
Mas, se não há como cobrir a capitalização imediata do estoque de compromissos acumulados (os recursos seriam trilionários!), então é preciso deixar que, pelo menos, o tempo passe a trabalhar a favor da mudança gradual. Uma proposta previdenciária duradoura passa por apenas dois princípios.
Primeiro: congelar o passado, redefinir o futuro. Significa que todos os contribuintes atuais, principalmente os novos, têm que passar a ter o direito de escolher o sistema de capitalização, baseado na acumulação contábil de seus aportes mensais. Está correto o candidato que defende, portanto, a contabilização individual das contribuições, ou seja, a conta previdenciária personalizada.
A conta individual de previdência estimulará que cada cidadão visualize o quanto tem acumulado e "enxergue" seu futuro, podendo ainda estimular que se faça mais aportes, voluntários e complementares à parcela obrigatória do INSS. Quanto ao passado, o que significa "congelar"? O governo precisa registrar seus débitos previdenciários totais, fixando ou "congelando" esse encargo total e, a partir daí, por meio de uma lei previdenciária anual, aditiva à Lei de Diretrizes Orçamentárias, estabelecer as fontes de recursos atuais e futuras do financiamento desse estoque de obrigações. Uma vez fotografado o débito total, o governo programará o "descongelamento" de cada prestação anual.
Antes de aprovar uma lei previdenciária em 2004, o Congresso precisará ter votado um tributo correspondente a uma contribuição solidária de toda a sociedade para a absorção gradual desse estoque "congelado" do passado. Preferivelmente, deixará de impor ao empregador a obrigação de recolher para o empregado, que, então, recolherá para si próprio. Logo, outra fonte correspondente à parcela do empregador deverá ser criada. Daí a oportunidade da discussão de uma reforma tributária simultânea, que defina recursos correspondentes a um tributo de aplicação geral a essa finalidade de cobertura previdenciária do passado. O tributo mais plausível seria uma espécie de IVA de administração federal, incidindo sobre o consumo, portanto capaz de "solidarizar" as contribuições na proporção do gasto de cada cidadão.
Segundo: unificar as previdências do INSS e do Tesouro, resguardando os benefícios adquiridos, e criando uma previdência complementar para o setor governo, com regras próprias, recebendo aportes das atuais pensões, desde que em valor excedente à prestação máxima paga pelo INSS.
Tal regra de unificação de regimes não só é democrática e simplificadora, como também definirá, com clareza, qual o nível de suporte financeiro a ser exigido dos orçamentos públicos quanto à complementação das suas aposentadorias e pensões. A sociedade poderá influir diretamente nessa discussão por intermédio dos parlamentares, abrindo a atual caixa-preta das chamadas "pensões privilegiadas" que hoje se acobertam atrás da multidão de outras aposentadorias de baixo valor.
Uma reforma duradoura da previdência não só deteria a tendência explosiva do déficit como também reduziria os encargos de juros do governo, abrindo caminho para o país crescer. O valor social da reforma seria ainda maior. Cidadãos que "enxergam" seu futuro conseguem programar melhor suas vidas, ser melhores pais e melhores mães, melhores profissionais e melhores colegas de trabalho. Uma sociedade que produz sua própria poupança alimenta seu futuro de novos investimentos e o seu presente com mais empregos produtivos. Uma previdência inteligente é a melhor escada de acesso à cidadania. É o que discutiremos no próximo artigo.


Paulo Rabello de Castro, 53, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do Instituto Atlântico (RJ). Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.
E-mail - paulo@rcconsultores.com.br


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