São Paulo, quarta, 4 de novembro de 1998

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ARTIGO

Ética nos negócios (ou seria estética?)

JULIO LOBOS

Vez por outra, a comunidade de negócios cisma com temas espirituais, talvez para desencargo de consciência. De uns tempos para cá, tem sido a vez da ética. Da ética -quem diria!- nos negócios.
Ética é um desses conceitos -tal como os de honestidade, virgindade ou verdade- que podem ser entendidos ora "fechados", ora "abertos". Meu pai, por exemplo, dizia que ninguém podia ser "mais ou menos" honesto. Ele via a honestidade, então, como um conceito "fechado". Já pessoas mais sofisticadas, como o presidente da República, reconhecem de viva voz a existência de várias éticas -a ética política, por exemplo, seria diferente das outras, quaisquer outras. A "ética", no seu caso, seria um conceito "aberto" -"aberto", enfim, à imaginação de quem quisesse manipulá-lo para acomodar dupla ou tripla moralidade.
Para os que interpretam o mundo em termos de "preto e branco", imaginar ética nos negócios é quase um delírio -algo assim como a Carla Perez rebolando no meio de um culto eclesiástico. Afinal, as coisas apontam, todos os dias, justamente para a direção contrária. E não me refiro às manchetes policiais hoje reservadas a laboratórios farmacêuticos multinacionais.
A consciência aética no "business" é menos episódica; ela atinge a própria ideologia de gestão.
Consulte os best sellers do ramo. Irá encontrar vários glorificando a arte da guerra, o pensamento de Maquiavel ou, acredite, os rituais da Máfia. E o que dizer da famosa frase atribuída a mr. Doug Ivester, presidente mundial da Coca-Cola, sobre enfiar uma mangueira de água na boca de um concorrente que porventura estiver se afogando? Nada ética, convenhamos, mas, que eu saiba, ela lhe valeu a admiração e não a repulsa dos seus pares. Ou do lance da maior empresa de informática do mundo, que foi condenada a pagar milhões de dólares em multas por subfaturamento e outras estripulias em dois países -México (US$ 35 milhões) e Rússia (US$ 8,5 milhões)- e está metida numa portentosa fraude de centenas de milhões de dólares num terceiro, a Argentina. Entretanto a marca dessa empresa é venerada pelos nativos de mais de 60 colônias, além de ser a terceira mais valiosa do mundo.
Definitivamente, a única forma de ver ética nos negócios é fechando os olhos. Aí, sim, as coisas ficam bem mais fáceis. Some-se a isso uma pitada de licença semântica, e o "business as usual" vira quase uma réplica dos Dez Mandamentos. Vejamos.
1) Uma empresa não mente. Ela negocia. Ou não foi isso o que se viu no leilão das teles?
2) As empresas também não corrompem, elas simpatizam. É por isso que a CPI das empreiteiras, no rescaldo do escândalo dos "anões do Orçamento", nunca vingou nem vai vingar. Afinal, como punir algumas das mais charmosas corporações do país por distribuir presentes à população? O fato de eles terem sido em dinheiro vivo e terem ido parar nos bolsos de parlamentares não diminui a magnanimidade do gesto.
3) Sabe-se também que as empresas competem. Por isso, não se engane: quando um fabricante de bebidas empurra para o dono do boteco ou da padaria, o seu cliente, duas caixas de um certo refrigerante ruim por caixa de boa cerveja que ele compra, isso é, sim, senhor, competição. Nada a ver com achacar, coagir ou pressionar -absolutamente.
Enfim, o exercício cotidiano de uma "ética meia-sola" no mundo dos negócios é produto da natureza mercantilista do próprio, unida à necessidade que cada empresa sente -aliás, como qualquer pessoa- de ser aceita socialmente. Daí que avaliar a conduta ética, no caso, seja como entrar em um quarto de espelhos: você sempre vê o que não é -ou nunca vê o que é.
Copiar o concorrente? Nada disso, faz-se, sim, "benchmarking". Fraudar o fisco? Nem pensar. Agora, praticar uma tal de "engenharia tributária" -oferecida a US$ 700 por cabeça em seminários sediados pelos melhores hotéis- pode e deve. Atentar contra o meio ambiente? Pecado mortal. Nunca sem autorização da prefeitura. E por aí vai. Na prática, trata-se da ética como se estética fosse, ou seja, uma tentativa de sugerir beleza onde não há.
A questão é: poderia ser diferente? Se as empresas abdicassem de levar vantagem em tudo o que fazem, quer seja em relação a clientes, fornecedores, governo, empregados... conseguiriam sobreviver? A resposta a essa pergunta é tão previsível quanto impublicável. Para despistar, então, organizam-se debates, consultam-se cientistas sociais e dão-se exemplos ("cases", com licença) inexpressivos, apenas para induzir os leigos a pensar que ela, a resposta, poderia ser outra.
Enfim, palmas para os que se preocupam seriamente com injetar ética no mundo dos negócios. Apenas vejo esse esforço com melancolia. No fundo, acabam fazendo o jogo do "business establishment". Pois a sua movimentação, embora honrosa, sugere que muitos por ali se importam com isso, o que definitivamente não é verdade -desde os tempos anteriores à invenção do dinheiro, lá na Mesopotâmia.


Julio Lobos, 52, PhD em Relações Industriais pela Universidade de Cornell (EUA), é consultor de empresas e autor de "A Participação dos Trabalhadores nos Lucros das Empresas".



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