São Paulo, domingo, 05 de março de 2000


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OPINIÃO ECONÔMICA
O fascismo na ponta dos pés


RUBENS RICUPERO
Pouco antes de morrer de forma trágica e inexplicada em 1987, Primo Levi advertia que um novo fascismo começava a reaparecer na Europa, só que dessa vez sorrateiramente, na ponta dos pés e chamando-se por outros nomes. Tendo sobrevivido a Auschwitz, Levi não quis talvez assistir ao avanço da besta na Áustria, Suíça, França e em sua própria Itália.
É preciso guardar o senso da medida e não exagerar a importância, afinal até agora limitada, dos êxitos eleitorais de tais grupos. Tampouco convém generalizar a todos o epíteto de fascista, de conotação histórica e especificidade bem determinadas. Melhor seria descrevê-los como constituindo uma espécie de constelação de partidos de extrema direita, de cultura e sensibilidade política extremista bem diversas dos conservadores clássicos e apresentando afinidades mais ou menos acentuadas com o fascismo e o nazismo dos anos 20 e 30.
Resta o problema de explicar por que essa franja -se não lunática, ao menos marginal- do espectro político vem encontrando crescente sucesso precisamente neste momento. Basta olhar qualquer compêndio escolar para ver que as razões da ascensão do fascismo no período de entreguerras ou desapareceram por completo ou, se estão presentes, é de modo tão diluído e transformado que não se pode atribuir-lhes a responsabilidade principal pelo que ocorre.
A necessidade de opor ao fantasma do comunismo resistência mais eficaz do que a das democracias liberais sempre foi considerada a causa número um do fascismo. Este estaria para o bolchevismo como o yang para o yin, o não para o sim, o negro para o vermelho. Ora, o vermelho hoje desbotou em rosa pálido, às vezes até virou azul, a cor adotada pelo último congresso dos ex-comunistas italianos. Nem por isso se dissolveu o negro ou cinza do fascismo.
Das outras causas não se vislumbra traço: a brutalização e o trauma trazidos pela Primeira Guerra Mundial, o impacto devastador das hiperinflações da Europa Central na década de 20 e da Grande Depressão dos 30, a pauperização da classe média. Quase que o contrário dessas condições é o que prevalece. O próprio desemprego, atenuado pelo seguro social, não tem muito a ver com o que significava há 70 anos (e na Áustria, cenário da vitória da extrema direita, o índice de desocupação é dos mais baixos da Europa). Na Itália, a Lega e a direita são mais fortes no norte próspero, com pouco desemprego, na Lombardia e Vêneto, do que na Sicília ou na Calábria.
Haverá, é claro, razões locais, nacionais. O desencanto e cansaço com a desgastada coalizão socialista-democrata-cristã na Áustria, o compreensível desejo de maior autonomia regional no norte da Itália. Esses fatores são, contudo, insuficientes para dar conta da dimensão geral, européia do retorno do extremismo de direita.
Como entender, portanto, o comportamento de parcela significativa do eleitorado? Sem querer ser exaustivo ou categórico, arrisco-me a sugerir três causas interligadas que vêm pesando em favor dessa tendência.
A primeira é o profundo sentimento de desorientação e desestabilização diante de transformações radicais da economia e do emprego que desarticulam a vida das pessoas sem que estas logrem compreender-lhes os motivos, o que lhes acarreta insegurança e angústia.
A segunda é a incapacidade das esquerdas, sobretudo dos social-democratas no poder, em dar resposta à inquietação e oferecer alternativa satisfatória aos que temem pelo futuro. Sem proposta para corrigir os aspectos mais perturbadores do capitalismo global, a social-democracia se limita, como diziam os comunistas de outrora, a gerir a crise de mutação do capitalismo. As veleidades de "terceiras vias" não se diferenciam muito da globalização pura e dura ou caem na banalidade do reformismo. Diante do conselho de resignar-se perante o inevitável, os perdedores preferem voltar-se para o fascismo, cuja essência é a irracionalidade e o voluntarismo. Daí que os ganhos da extrema direita se façam quase sempre à custa da social-democracia.
A terceira razão é o temor e o ódio do estrangeiro, o racismo, a xenofobia. Bem mais que o anti-semitismo, é esse o único traço importante que todos os extremistas europeus partilham, pois mexe fundo com o medo dos indivíduos e se adapta com perfeição à política do ressentimento. O estrangeiro assume formas diversas, mas em toda a parte o imigrante, clandestino ou não, de pele em geral escura, religião e cultura estranhas, é a expressão visível, tangível da ameaça. Ao emprego certamente, mas também à substância íntima da comunidade, à sua homogeneidade, ao sentimento de identidade de nações até agora pouco familiarizadas com o outro, o diferente.
Complicam esse sentimento o colapso demográfico europeu; a probabilidade, como prevê Umberto Eco, de que em 2050 a Europa será mestiça; que, ao longo dos próximos 30 anos, o continente terá a necessidade de 50 milhões de trabalhadores estrangeiros só para preencher o vazio demográfico, conforme estima a Divisão de População da ONU.
Assistindo ao noticiário da TV italiana, fiquei chocado ao ouvir que um pobre trabalhador imigrante havia sido brutalmente espancado, quase até a morte, apenas por ser marroquino. Podia ter sido em qualquer lugar. Dessa vez, contudo, tinha sido na pequena cidade de onde, em 1890, partiram como imigrantes pobres meus avós paternos, hoje próspero centro industrial do norte da Apúlia.
Será inevitável repetir esse ciclo infernal de ódio, ressentimento, brutalidade fascista?
Ou ainda podemos esperar que afinal prevaleça o legado de Moisés, base de nossa cultura judaico-cristã: "Ama os estrangeiros, porque tu também foste estrangeiro na terra do Egito"?



Rubens Ricupero, 62, secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro da Fazenda (governo Itamar Franco), é autor de "O Ponto Ótimo da Crise" (editora Revan). Escreve aos domingos nesta coluna.


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