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OPINIÃO ECONÔMICA
O fascismo na ponta dos pés
RUBENS RICUPERO
Pouco antes de morrer de forma
trágica e inexplicada em 1987, Primo Levi advertia que um novo
fascismo começava a reaparecer
na Europa, só que dessa vez sorrateiramente, na ponta dos pés e
chamando-se por outros nomes.
Tendo sobrevivido a Auschwitz,
Levi não quis talvez assistir ao
avanço da besta na Áustria, Suíça,
França e em sua própria Itália.
É preciso guardar o senso da medida e não exagerar a importância, afinal até agora limitada, dos
êxitos eleitorais de tais grupos.
Tampouco convém generalizar a
todos o epíteto de fascista, de conotação histórica e especificidade
bem determinadas. Melhor seria
descrevê-los como constituindo
uma espécie de constelação de
partidos de extrema direita, de
cultura e sensibilidade política extremista bem diversas dos conservadores clássicos e apresentando
afinidades mais ou menos acentuadas com o fascismo e o nazismo dos anos 20 e 30.
Resta o problema de explicar por
que essa franja -se não lunática,
ao menos marginal- do espectro
político vem encontrando crescente sucesso precisamente neste momento. Basta olhar qualquer compêndio escolar para ver que as razões da ascensão do fascismo no
período de entreguerras ou desapareceram por completo ou, se estão presentes, é de modo tão diluído e transformado que não se pode atribuir-lhes a responsabilidade principal pelo que ocorre.
A necessidade de opor ao fantasma do comunismo resistência
mais eficaz do que a das democracias liberais sempre foi considerada a causa número um do fascismo. Este estaria para o bolchevismo como o yang para o yin, o não
para o sim, o negro para o vermelho. Ora, o vermelho hoje desbotou
em rosa pálido, às vezes até virou
azul, a cor adotada pelo último
congresso dos ex-comunistas italianos. Nem por isso se dissolveu o
negro ou cinza do fascismo.
Das outras causas não se vislumbra traço: a brutalização e o
trauma trazidos pela Primeira
Guerra Mundial, o impacto devastador das hiperinflações da Europa Central na década de 20 e da
Grande Depressão dos 30, a pauperização da classe média. Quase
que o contrário dessas condições é
o que prevalece. O próprio desemprego, atenuado pelo seguro social, não tem muito a ver com o
que significava há 70 anos (e na
Áustria, cenário da vitória da extrema direita, o índice de desocupação é dos mais baixos da Europa). Na Itália, a Lega e a direita
são mais fortes no norte próspero,
com pouco desemprego, na Lombardia e Vêneto, do que na Sicília
ou na Calábria.
Haverá, é claro, razões locais,
nacionais. O desencanto e cansaço
com a desgastada coalizão socialista-democrata-cristã na Áustria,
o compreensível desejo de maior
autonomia regional no norte da
Itália. Esses fatores são, contudo,
insuficientes para dar conta da dimensão geral, européia do retorno
do extremismo de direita.
Como entender, portanto, o
comportamento de parcela significativa do eleitorado? Sem querer
ser exaustivo ou categórico, arrisco-me a sugerir três causas interligadas que vêm pesando em favor
dessa tendência.
A primeira é o profundo sentimento de desorientação e desestabilização diante de transformações radicais da economia e do
emprego que desarticulam a vida
das pessoas sem que estas logrem
compreender-lhes os motivos, o
que lhes acarreta insegurança e
angústia.
A segunda é a incapacidade das
esquerdas, sobretudo dos social-democratas no poder, em dar resposta à inquietação e oferecer alternativa satisfatória aos que temem pelo futuro. Sem proposta
para corrigir os aspectos mais perturbadores do capitalismo global,
a social-democracia se limita, como diziam os comunistas de outrora, a gerir a crise de mutação
do capitalismo. As veleidades de
"terceiras vias" não se diferenciam
muito da globalização pura e dura ou caem na banalidade do reformismo. Diante do conselho de
resignar-se perante o inevitável, os
perdedores preferem voltar-se para o fascismo, cuja essência é a irracionalidade e o voluntarismo.
Daí que os ganhos da extrema direita se façam quase sempre à custa da social-democracia.
A terceira razão é o temor e o
ódio do estrangeiro, o racismo, a
xenofobia. Bem mais que o anti-semitismo, é esse o único traço importante que todos os extremistas
europeus partilham, pois mexe
fundo com o medo dos indivíduos
e se adapta com perfeição à política do ressentimento. O estrangeiro
assume formas diversas, mas em
toda a parte o imigrante, clandestino ou não, de pele em geral escura, religião e cultura estranhas, é a
expressão visível, tangível da
ameaça. Ao emprego certamente,
mas também à substância íntima
da comunidade, à sua homogeneidade, ao sentimento de identidade de nações até agora pouco
familiarizadas com o outro, o diferente.
Complicam esse sentimento o
colapso demográfico europeu; a
probabilidade, como prevê Umberto Eco, de que em 2050 a Europa será mestiça; que, ao longo dos
próximos 30 anos, o continente terá a necessidade de 50 milhões de
trabalhadores estrangeiros só para preencher o vazio demográfico,
conforme estima a Divisão de População da ONU.
Assistindo ao noticiário da TV
italiana, fiquei chocado ao ouvir
que um pobre trabalhador imigrante havia sido brutalmente espancado, quase até a morte, apenas por ser marroquino. Podia ter
sido em qualquer lugar. Dessa vez,
contudo, tinha sido na pequena
cidade de onde, em 1890, partiram
como imigrantes pobres meus
avós paternos, hoje próspero centro industrial do norte da Apúlia.
Será inevitável repetir esse ciclo
infernal de ódio, ressentimento,
brutalidade fascista?
Ou ainda podemos esperar que
afinal prevaleça o legado de Moisés, base de nossa cultura judaico-cristã: "Ama os estrangeiros, porque tu também foste estrangeiro
na terra do Egito"?
Rubens Ricupero, 62, secretário-geral da
Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro da Fazenda (governo Itamar Franco), é
autor de "O Ponto Ótimo da Crise" (editora
Revan). Escreve aos domingos nesta coluna.
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