São Paulo, domingo, 05 de março de 2000


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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Abertura financeira e crescimento

LUIZ GONZAGA BELLUZZO
Nos dias de hoje -tal como nas três últimas décadas do século 19- não são as transações em bens e serviços que determinam a trajetória do balanço de pagamentos, mas sim a entrada e saída de capitais.
Diante dos movimentos de arbitragem e da formação de posições especulativas nos mercados "globalizados" de moedas e de ativos, os países da periferia têm posição desconfortável. Dotados de moedas sem reputação, aquelas que não são demandadas nos negócios entre nacionais de terceiros países, as economias ditas emergentes encontram-se diante do risco permanente de crises cambiais e financeiras.
Na prática, para manter a abertura da conta de capitais do balanço de pagamentos, os emergentes estão obrigadas a escolher, nestes tempos da finança liberalizada, entre a introdução de controles cambiais e a submissão à política monetária do país ou países de moeda dominante.
A submissão absoluta está concretizada nos regimes de "currency board" ou na adoção pura e simples da moeda estrangeira. Na maioria das vezes, a capitulação foi o desfecho de uma fuga desesperada para escapar às agruras de um sistema monetário destruído pela hiperinflação. Adotando tais soluções, esses países renunciaram à soberania monetária e entregaram as funções de administração do crédito, de provedor de liquidez e de "emprestador" de última instância a um banco central estrangeiro. Coerentemente, trataram de vender o sistema bancário para os estrangeiros.
A perda completa de controle sobre a política monetária e de crédito vem determinando o alinhamento passivo dos ciclos de expansão e declínio da economia nacional às expectativas dos administradores da riqueza "globalizada" e da liquidez internacional. Dada a fragilidade "estrutural" do balanço de pagamentos e, portanto, de suas moedas, as economias periféricas "dolarizadas" ficam expostas às ondas de otimismo e pessimismo inerentes aos mercados "globalizados".
Os surtos eufóricos de liquidez fácil e de endividamento externo -acompanhado de elevação dos preços dos ativos (inclusive do câmbio)- são seguidos de "crises de confiança" e de profundos ajustamentos recessivos. Na era da integração e da liberalização financeiras, a instabilidade nas economias periféricas, como Janus, se apresenta com duas faces: uma, a máscara da inflação elevada e renitente, como a que se seguiu à crise da dívida externa do início dos anos 80; outra, a careta das violentas flutuações do produto e do emprego, típicas da década dos 90.
Alguns países da periferia vêm tentando escapar dessa camisa-de-força, preferindo correr os riscos de uma maior liberdade na gestão de sua moeda. O Brasil, por exemplo, pretende ter ingressado num regime de câmbio flexível. Um dos argumentos esgrimidos pelos partidários do câmbio flutuante é a possibilidade de liberar a política monetária (leia-se a taxa de juros) das funções relacionadas com o ajustamento do balanço de pagamentos. Os movimentos de valorização/desvalorização do câmbio ficariam encarregados de cumprir esse papel.
A disparada do câmbio e a ameaça de aumento das taxas de inflação, logo depois da desvalorização do real, em janeiro de 1999, mostraram os riscos desse cometimento num país com elevado passivo externo e cujo setor privado "carrega" uma massa apreciável de ativos líquidos emitidos pelo governo. O susto do final de 1999, causado por uma nova rodada de desvalorização do real e pelo "salto" das taxas de inflação, foi amainado pela ação do Banco Central, mediante a adoção de uma política monetária cautelosa: manutenção do patamar de juros em 19% e "valorização" nominal do real em relação ao dólar. Essas medidas de política econômica contaram também com a colaboração da volumosa entrada de investimentos diretos. Na verdade, acabamos recorrendo aos métodos da "flutuação suja", ou seja, adotamos uma taxa administrada.
Obrigado a intervir no mercado cambial, o Banco Central não recuperou a liberdade para reduzir a taxa de juros. Assim, a economia brasileira continuará crescendo abaixo do seu potencial, não podendo evoluir num ambiente favorável à expansão do crédito, ao investimento, ao endividamento das famílias e das empresas. Apesar disso tudo, os rapazes do BC vêm declarando que pretendem ampliar a abertura financeira.
As projeções sobre o desempenho da economia no ano 2000, em sua maioria, antecipam um período de retomada do crescimento, inflação dentro das metas, resultados melhores para as transações correntes e ganhos na área fiscal.
A desvalorização produziu lá seus efeitos. Os movimentos de preços e quantidades, somados à sensação de que a crise financeira internacional é coisa do passado, vem mudando a percepção dos mercados. Há uma clara melhoria nas condições de liquidez externa, expressa na redução dos "spreads" que separam as taxas de juros cobradas sobre a dívida brasileira e aquelas que incidem sobre papéis do governo americano de igual prazo de maturação.
Isso indica que podemos estar diante de um novo (e bastante atenuado) "ciclo de valorização de ativos". Em princípio, num regime de câmbio flutuante, essas circunstâncias recomendariam uma queda mais rápida dos juros para estimular a atividade doméstica e, ao mesmo tempo, impedir uma valorização ulterior e indesejável da moeda local. Parece, no entanto, que os atuais responsáveis pela administração da economia temem as expectativas de prosseguimento da "rodada" de elevação dos juros externos, a aceleração da inflação e estão cientes da vulnerabilidade estrutural do balanço de pagamentos.


Luiz Gonzaga Belluzzo, 57, é professor titular de Economia da Unicamp (Universidade de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).


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