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Lula entrega o acordo de Doha a Deus
Após fiasco das negociações na Alemanha, presidente diz, em Portugal, que ainda crê na conquista de melhores condições de vida
O comissário europeu de Comércio, Peter Mandelson, deixou Deus de lado e culpou os seres humanos pelo impasse sobre Doha
Ana Rojas/Folha Imagem
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Lula, José Sócrates e Durão Barroso, durante coletiva em Lisboa |
CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A LISBOA
O inoxidável otimismo do
presidente Luiz Inácio Lula da
Silva sobre um iminente acordo na Rodada Doha parece ter
sido abalado, embora ele diga o
contrário, pelo recente fiasco
da reunião do G4 (Brasil, Estados Unidos, Índia e União Européia), destinada exatamente
a dar um empurrão decisivo às
negociações.
Ontem, em discurso a empresários europeus e brasileiros, Lula entregou a Deus a possibilidade de um acordo:
"Que Deus nos ajude a fazer
um acordo".
Em tom místico, o presidente lembrou aos empresários
que é cristão e lhes disse que levanta todos os dias "acreditando em Deus que vamos conquistar melhores condições de
vida" (no que, para ele, a conclusão da Rodada Doha ajudará).
Muito mais terrenal, o comissário europeu de Comércio,
Peter Mandelson, preferiu deixar Deus de lado numa história
que envolve nada místicos US$
9 trilhões (total do comércio
mundial de bens) e culpar seres
humanos pelo impasse até agora na Rodada: "Quem fez ao
presidente Lula o relato sobre a
proposta agrícola européia [na
reunião do G4] lhe mostrou o
script de cabeça para baixo",
ironizou Mandelson.
Nem precisou dizer o nome
que de quem "mostrou o
script" para Lula: foi o chanceler Celso Amorim, com quem
Mandelson tem freqüentes colisões verbais.
Ontem, a portas fechadas, a
colisão repetiu-se, mas em torno de números, sem agressões
como as que ocorreram depois
que fracassou o encontro do
G4, há 15 dias, na cidade alemã
de Potsdam.
Amorim repassou durante a
1ª Cúpula Brasil/União Européia ("cimeira", como preferem
os portugueses) os números sobre o efeito da redução nas tarifas brasileiras de bens industriais, a demanda européia rejeitada em Potsdam.
Antes, Mandelson havia dito
aos jornalistas que encontrara
no setor privado brasileiro, durante sua palestra para a cúpula
empresarial, muito mais flexibilidade do que nos negociadores oficiais. A Folha pediu
exemplos, mas o comissário remeteu-a aos empresários brasileiros.
Armando de Queiroz Monteiro Neto, presidente da CNI
(Confederação Nacional da Indústria), e, como tal, o de mais
alto calibre presente ao encontro, confirmou a disposição para a flexibilidade, mas desmentiu que ela tivesse o tamanho
desejado pelos europeus.
"Não definimos o grau da
abertura que estamos dispostos a aceitar nem em que áreas,
até porque o setor tem situações muito heterogêneas", disse o presidente da CNI.
Na assessoria técnica da central empresarial, os números
desmentem qualquer flexibilidade próxima à desejada por
Mandelson (e certamente foram os números que Amorim
mencionou a portas fechadas).
Se o Brasil aceitasse algo próximo do que a UE quer, a tarifa
média cairia de 31% para
11,74%; a máxima baixaria de
35% para 12,78%. Dos 8.800
itens que compõem a estrutura
tarifária registrada na Organização Mundial do Comércio,
4.957 sofreriam redução nas
tarifas.
"É brutal", resume Soraya
Rosar, gerente-executiva da
Unidade de Negociações Internacionais da CNI.
"Algo está errado"
A discrepância tão brutal nos
números permitiu a Lula, durante a entrevista coletiva de
encerramento da "cimeira",
produzir uma simplificação
("óbvio ululante", segundo ele
próprio), mas que acaba sendo
um resumo adequado do estado das negociações: "Se os números [apresentados no G4]
fossem satisfatórios para todos
os lados, teria havido acordo. Se
não houve é porque algo está
errado".
O presidente contou que, nos
seus contatos com líderes mundiais, tem sempre cobrado a
conclusão do acordo, inclusive
lembrando que seus mandatos
estavam por terminar (casos de
Tony Blair e de Jacques Chirac)
ou terminariam no ano que
vem (George W. Bush, que, na
verdade, só sai em 2009).
Concluiu: "Tenho mais três
anos e meio de mandato e não
quero sair sem concluir o acordo de Doha. Se não fizermos o
acordo vamos amargar insatisfações que vão fazer com que
nos arrependamos de não termos sidos generosos com os
países mais pobres".
Talvez pela pregação intensa
e algo mística de Lula, o fato é
que tanto Durão Barroso, o presidente da Comissão Européia,
como José Sócrates, o primeiro-ministro português, fizeram
questão de deixar claro que a
UE não desistiu de Doha, uma
negociação que começou há
seis anos, na capital do Qatar, e
pouco avançou desde então.
Sócrates chegou ao exagero
de afirmar, na coletiva, que a
cúpula Brasil/União Européia
servira para "relançar as negociações", embora ele próprio
-e todos os demais participantes- tenham enfatizado que
cúpulas não são reuniões negociadoras.
Acabou sobrando para Mandelson, o estraga-prazer, pôr
uma pitada de realismo na festa
da "cimeira", ao lembrar aos
empresários, em seu discurso,
que a União Européia só irá, em
matéria agrícola, até o limite
autorizado pelo mandato conferido pelos Estados-membros,
"sem impor um esforço insuportável aos agricultores europeus".
Ou seja, nada além do que o
Brasil rejeitara em Potsdam.
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