São Paulo, quinta-feira, 05 de julho de 2007

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Lula entrega o acordo de Doha a Deus

Após fiasco das negociações na Alemanha, presidente diz, em Portugal, que ainda crê na conquista de melhores condições de vida

O comissário europeu de Comércio, Peter Mandelson, deixou Deus de lado e culpou os seres humanos pelo impasse sobre Doha

Ana Rojas/Folha Imagem
Lula, José Sócrates e Durão Barroso, durante coletiva em Lisboa


CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A LISBOA

O inoxidável otimismo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva sobre um iminente acordo na Rodada Doha parece ter sido abalado, embora ele diga o contrário, pelo recente fiasco da reunião do G4 (Brasil, Estados Unidos, Índia e União Européia), destinada exatamente a dar um empurrão decisivo às negociações.
Ontem, em discurso a empresários europeus e brasileiros, Lula entregou a Deus a possibilidade de um acordo:
"Que Deus nos ajude a fazer um acordo".
Em tom místico, o presidente lembrou aos empresários que é cristão e lhes disse que levanta todos os dias "acreditando em Deus que vamos conquistar melhores condições de vida" (no que, para ele, a conclusão da Rodada Doha ajudará).
Muito mais terrenal, o comissário europeu de Comércio, Peter Mandelson, preferiu deixar Deus de lado numa história que envolve nada místicos US$ 9 trilhões (total do comércio mundial de bens) e culpar seres humanos pelo impasse até agora na Rodada: "Quem fez ao presidente Lula o relato sobre a proposta agrícola européia [na reunião do G4] lhe mostrou o script de cabeça para baixo", ironizou Mandelson.
Nem precisou dizer o nome que de quem "mostrou o script" para Lula: foi o chanceler Celso Amorim, com quem Mandelson tem freqüentes colisões verbais.
Ontem, a portas fechadas, a colisão repetiu-se, mas em torno de números, sem agressões como as que ocorreram depois que fracassou o encontro do G4, há 15 dias, na cidade alemã de Potsdam.
Amorim repassou durante a 1ª Cúpula Brasil/União Européia ("cimeira", como preferem os portugueses) os números sobre o efeito da redução nas tarifas brasileiras de bens industriais, a demanda européia rejeitada em Potsdam.
Antes, Mandelson havia dito aos jornalistas que encontrara no setor privado brasileiro, durante sua palestra para a cúpula empresarial, muito mais flexibilidade do que nos negociadores oficiais. A Folha pediu exemplos, mas o comissário remeteu-a aos empresários brasileiros.
Armando de Queiroz Monteiro Neto, presidente da CNI (Confederação Nacional da Indústria), e, como tal, o de mais alto calibre presente ao encontro, confirmou a disposição para a flexibilidade, mas desmentiu que ela tivesse o tamanho desejado pelos europeus.
"Não definimos o grau da abertura que estamos dispostos a aceitar nem em que áreas, até porque o setor tem situações muito heterogêneas", disse o presidente da CNI.
Na assessoria técnica da central empresarial, os números desmentem qualquer flexibilidade próxima à desejada por Mandelson (e certamente foram os números que Amorim mencionou a portas fechadas).
Se o Brasil aceitasse algo próximo do que a UE quer, a tarifa média cairia de 31% para 11,74%; a máxima baixaria de 35% para 12,78%. Dos 8.800 itens que compõem a estrutura tarifária registrada na Organização Mundial do Comércio, 4.957 sofreriam redução nas tarifas.
"É brutal", resume Soraya Rosar, gerente-executiva da Unidade de Negociações Internacionais da CNI.

"Algo está errado"
A discrepância tão brutal nos números permitiu a Lula, durante a entrevista coletiva de encerramento da "cimeira", produzir uma simplificação ("óbvio ululante", segundo ele próprio), mas que acaba sendo um resumo adequado do estado das negociações: "Se os números [apresentados no G4] fossem satisfatórios para todos os lados, teria havido acordo. Se não houve é porque algo está errado".
O presidente contou que, nos seus contatos com líderes mundiais, tem sempre cobrado a conclusão do acordo, inclusive lembrando que seus mandatos estavam por terminar (casos de Tony Blair e de Jacques Chirac) ou terminariam no ano que vem (George W. Bush, que, na verdade, só sai em 2009).
Concluiu: "Tenho mais três anos e meio de mandato e não quero sair sem concluir o acordo de Doha. Se não fizermos o acordo vamos amargar insatisfações que vão fazer com que nos arrependamos de não termos sidos generosos com os países mais pobres".
Talvez pela pregação intensa e algo mística de Lula, o fato é que tanto Durão Barroso, o presidente da Comissão Européia, como José Sócrates, o primeiro-ministro português, fizeram questão de deixar claro que a UE não desistiu de Doha, uma negociação que começou há seis anos, na capital do Qatar, e pouco avançou desde então.
Sócrates chegou ao exagero de afirmar, na coletiva, que a cúpula Brasil/União Européia servira para "relançar as negociações", embora ele próprio -e todos os demais participantes- tenham enfatizado que cúpulas não são reuniões negociadoras.
Acabou sobrando para Mandelson, o estraga-prazer, pôr uma pitada de realismo na festa da "cimeira", ao lembrar aos empresários, em seu discurso, que a União Européia só irá, em matéria agrícola, até o limite autorizado pelo mandato conferido pelos Estados-membros, "sem impor um esforço insuportável aos agricultores europeus".
Ou seja, nada além do que o Brasil rejeitara em Potsdam.


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