São Paulo, sábado, 06 de janeiro de 2001

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OPINIÃO ECONÔMICA

Anteprojeto de agência isenta multinacionais

GESNER OLIVEIRA

O anteprojeto do Executivo de mudança na Lei de Defesa da Concorrência, que está sob consulta pública até 15 deste mês, isenta de exame várias operações entre multinacionais que podem afetar o mercado brasileiro.
A atual lei nš 8.884, de 1994, prevê que todos os atos que envolvam empresas que detenham mais de 20% do mercado ou que faturem mais de R$ 400 milhões sejam apreciados pelo Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica). A jurisprudência do Cade desde 1996 fixou o entendimento de que o valor mencionado deve alcançar o faturamento do grupo no mundo. Assim, mesmo que uma multinacional tenha faturamento pequeno no Brasil, ao comprar ou se associar a uma empresa no país, estará sujeita à apreciação do Cade se o grupo controlador faturar mais de R$ 400 milhões no mundo.
A pretexto de diminuir o número de operações a serem apreciadas e supostamente desobstruir a pauta de casos da agência a ser criada, o anteprojeto alterou o critério de notificação para R$ 150 milhões de faturamento no Brasil. Assim, um grupo internacional, cujas vendas no mercado brasileiro não atinjam R$ 150 milhões, porém com grande poder econômico, quase sempre superior ao de grupos nacionais, poderia adquirir uma empresa no país ou associar-se a outra estrangeira aqui presente sem submeter a transação ao controle convencional de fusões e aquisições.
A proposta estaria baseada na noção intuitiva de que a entrada de um novo grupo internacional no mercado nacional só pode aumentar a concorrência neste último e que, portanto, prescindiria de controle antitruste.
No entanto um exame mais cuidadoso mostra a inadequação dessa visão em uma economia globalizada. Conforme ilustrado pelas estatísticas do "World Investment Report" de 2000 da ONU/ Unctad e pelos relatórios anuais do Cade, as megafusões no mundo afetam os diversos mercados nacionais, mesmo quando seus participantes não atuam diretamente nas respectivas jurisdições.
O estudo de uma amostra de 192 julgados em 1999 no Cade que envolviam alguma forma de participação estrangeira revela que em 98% dos casos havia impactos potenciais sobre o mercado a serem analisados. Embora louváveis, os objetivos de simplificação e maior celeridade na análise não justificam a isenção de controle relativamente a empresas que atuam no mercado doméstico, sobretudo as de porte mundial. Aliás, quanto às empresas nacionais, estas passariam, segundo o anteprojeto, a sofrer controle mais abrangente uma vez que se pretende reduzir o patamar de notificação de R$ 400 milhões para R$ 150 milhões, elevando desnecessariamente, em mais de 100%, o universo potencial de atos a serem controlados.
Dois exemplos hipotéticos ajudam a entender as implicações da mudança de regras sugerida no anteprojeto. Suponha duas multinacionais, A e B, que exportem um insumo importante para o Brasil e não faturem R$ 150 milhões no país, mantendo subsidiárias para primordialmente comercializar a referida matéria-prima. A empresa A compra a B, formando a C, e subitamente o preço do insumo sobe 20%, encarecendo a produção e o produto para o consumidor final.
Na legislação atual, uma transação desse tipo seria apreciada pelo Cade e, caso necessário, algumas medidas poderiam ser adotadas. A operação só seria aprovada no país se A e B mantivessem separadas suas estruturas de comercialização e distribuição; ou, mais provavelmente, se A e B vendessem parte de seus ativos nacionais a um concorrente, possivelmente uma outra multinacional. O país ganharia com insumos mais baratos e maior investimento. Em contraste, o anteprojeto do Executivo isenta as empresas da obrigação de submissão de uma operação dessa natureza.
Suponha, adicionalmente, dois grandes grupos internacionais atuando nas indústrias de tecnologia de ponta -informática e e-commerce-, onde os mercados ainda estão fragmentados, com baixo faturamento, elevadas taxas de expansão e caminham para rápida consolidação. Pelo anteprojeto, operações de compra ou associação entre eles, certamente relevantes para o nível de abertura e concorrência do mercado, estariam fora de controle.
Vários outros exemplos poderiam ser formulados, sugerindo a inadequação da proposta. Note-se que uma simplificação no exame de fusões pode ser feita de outra forma, sem isentar multinacionais de submeter seus atos ao Cade. Contribuiria, nesse sentido, a melhor redação de dispositivo já existente na lei atual, que prevê a aprovação automática de atos que não são nocivos à concorrência, desonerando os setores público e privado do excesso de burocracia.
É ingênuo imaginar que a lei brasileira, como a de qualquer outro país, tenha o condão de neutralizar todos os potenciais efeitos negativos das megafusões. Porém, na maioria dos ordenamentos jurídicos, os controles da concentração globalizada do poder econômico vêm-se tornando mais rigorosos. Seria razoável trilhar direção oposta?

Gesner Oliveira, 44, é doutor em economia pela Universidade da Califórnia (Berkeley), professor da FGV-SP, consultor de Tendências e ex-presidente do Cade.
E-mail - gesner@fgvsp.br


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