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GLOBALIZAÇÃO
Dos 6 bilhões de pessoas do mundo, 3 bilhões nem iniciam a subida, pois vivem com até US$ 2 por dia
No mundo novo, poucos chegam ao pico
CLÓVIS ROSSI
enviado especial a Davos
Adolfo Oggi, presidente da
Confederação Suíça, nasceu em
um vale cercado pelos Alpes. Na
juventude, ajudava o pai, responsável por obras de contenção de
avalanches e como guia na montanha.
Dessa experiência, extraiu a lição de que "a única coisa que importa não é ser o primeiro a chegar ao pico, mas fazer com que todos cheguem e, depois, desçam de
volta com toda a segurança".
Oggi utilizou esse ensinamento,
no discurso com que inaugurou o
encontro anual 2000 do Fórum
Econômico Mundial, na comparação com a economia moderna:
seria igualmente fundamental
que todos chegassem ao cume,
em segurança.
Pena que, na vida real, não seja
assim. O número talvez mais repetido nas sessões deste ano foi
terrível: 3 bilhões dos 6 bilhões de
habitantes do planeta não conseguem nem começar a subir a
montanha, porque vivem com até
US$ 2 por dia.
"Sempre houve pobres e ricos
no mundo", conforma-se o presidente da Indonésia, Abdurrahman Wahid.
É verdade, mas é igualmente
verdade que a brecha entre ricos e
pobres não fez senão ampliar-se
no século que está terminando, de
acordo com os dados esgrimidos
por David Bryer, diretor-executivo da Oxfam, uma ONG (organização não-governamental) britânica das mais respeitadas do planeta.
No século passado, a renda dos
20% mais ricos era apenas três vezes superior à dos 20% mais pobres. Nos anos 30 deste século,
passou a ser 30 vezes maior. Hoje,
é 74 vezes maior, diz Bryer.
Pior: a revolução tecnológica
por que passa o mundo tende a
acentuar uma situação colocada
nestes termos pelo presidente
norte-americano Bill Clinton, ao
discursar em Davos: "Poucos de
nós vivemos na ponta da nova
economia; demasiados vivem no
limite da sobrevivência, sem
meios para mover-se para cima".
Clinton sabe do que está falando. Em seu próprio país, nem o
fato de estar atingindo o recorde
histórico de 107 meses consecutivos de crescimento foi suficiente
para aliviar a pobreza.
"O boom de uma década de fato
ajudou pessoas de todas as categorias de renda, mas somente no
ano passado a renda das famílias
de rendimento médio recuperou
os níveis de 1989. E a pobreza ainda excede os níveis de 1960", diz
Laura D'Andrea Tyson, reitora da
Escola de Negócios da Universidade de Berkeley (Califórnia).
Se é assim na economia norte-americana, com todos os seus recordes, no resto do mundo só pode ser pior, como é óbvio.
É natural, por isso, que Philip
Jennings, secretário-geral da recém-criada Rede Internacional de
Sindicatos, para abrigar trabalhadores de colarinho branco, diga
que a nova economia, assentada
na tecnologia da informação, vai
dividir o mundo em "celebridades e serventes".
Não são apenas lideranças sindicais como Jennings que acreditam no aumento da distância entre os que estão no cume da montanha e os que não saem do sopé.
Mesmo o empresariado tem
idêntica sensação, a julgar por
pesquisa instantânea feita durante uma das sessões do fórum de
Davos. Segundo a pesquisa, 63%
disseram acreditar que a Internet,
a ferramenta essencial da "nova
economia", vai aumentar a brecha entre ricos e pobres.
O que, de resto, é absolutamente natural: "Como levar o potencial para fazer uso dessa tecnologia para os 3 bilhões de pessoas
que vivem com menos de US$ 2
por dia?", pergunta, por exemplo,
Charles Holliday, presidente da
DuPont.
A brecha na "nova economia"
será multifacetada, a julgar pelo
que se disse em Davos.
Numa ponta, a velha divisão entre países desenvolvidos e em desenvolvimento só tende a se acentuar. Afinal, apenas 7% das empresas dos países em desenvolvimento estão fazendo os investimentos necessários para tirar pleno proveito das novas tecnologias, conforme pesquisa citada
por James Schiro, executivo-chefe
da Pricewaterhouse Coopers.
Mesmo a brecha entre ricos e
um pouco menos ricos pode se
acentuar, se a "nova economia"
ficar centrada no comércio eletrônico.
Pesquisa do banco HSBC mostra que 80% do movimento gerado pelo comércio eletrônico internacional origina-se em firmas
norte-americanas, contra apenas
10% na Europa e 5% na Ásia.
Números que reforçam a sensação empírica manifestada por
Victor Halberstadt, professor de
economia pública da Universidade Holandesa de Leiden: "O efeito
coletivo da nova economia é visível nos Estados Unidos, mas é
quase invisível na Europa".
Mas a tecnologia não apenas
acentuará, eventualmente, antigas divisões entre ricos e pobres e
entre regiões do mundo.
Provocará também o surgimento de "três novas classes de cidadãos", na visão do celebrado filósofo italiano Umberto Eco, professor da Universidade de Bolonha. São elas:
1 - O proletariado, que Eco prefere chamar agora de "prolex",
que apenas vê televisão e só recebe imagens pré-fabricadas;
2 - A "pequena burguesia", que
usa, sim, computadores, mas o
faz de maneira passiva;
3 - A "nomenklatura", ou seja,
os que dominam todas as facetas
high-tech.
Sempre segundo Eco, o uso intensivo do computador provocará também o surgimento ou aumento da solidão.
"O lado negro (do uso de computadores) é que haverá menos e
menos chances de interagir com
pessoas, sentir os odores do corpo, apertar mãos."
Se é assim na vida pessoal, parece pior na vida coletiva. A economia tornou-se de tal forma dominante que está deixando em absoluto segundo plano outros aspectos da vida, como os sociais, os
culturais e os políticos.
"Aparentemente, o problema
do mundo de hoje é que economia e sociedade tomaram trilhas
diferentes: a economia é globalizada e a sociedade, não", diz, por
exemplo, Ronnie Chan, presidente da Hang Lung Development
Company, de Hong Kong.
Pior: "É impossível globalizar a
sociedade, por ser caracterizada
pela língua, pelas tradições, pela
cultura, pela história", diz Kurt
Biedenkopf, ministro-presidente
do Estado alemão da Saxônia.
Numa conferência em que muito se falou de e-commerce (comércio eletrônico), e-business
(negócios eletrônicos), era inevitável que se cunhasse também a
expressão "e-govern", ou governo eletrônico.
"Cuidado com governos que
não abracem a Internet", previne
Eric Hippeau, presidente da Ziff-Davis, conglomerado de mídia e
tecnologia norte-americano.
Sempre atento aos modismos
que fazem sucesso, o primeiro-ministro britânico, Tony Blair,
captou o espírito da coisa. Anunciou, no discurso pronunciado
durante o encontro anual: "Fixamos uma meta exigente: queremos nos tornar o melhor ambiente no mundo para o comércio eletrônico até 2002".
Como? "Pretendemos assegurar que o custo de acesso à Internet seja competitivo. E pretendemos que o comércio eletrônico
desempenhe um papel mais dominante nas atividades do governo, dos indivíduos e dos negócios
britânicos do que em qualquer
outra parte do mundo em três
anos."
É uma idéia que atravessa continentes. "Governos são ineficientes no mundo todo, e o único caminho para avançar é por meio
de governança eletrônica", diz
Chandrababu Nabu, ministro-chefe do Estado indiano de Andhra Pradesh.
Nesse mundo ideal de governo
eletrônico, "os cidadãos não terão
que procurar o governo por serviços, mas o inverso", diz Nabu.
Concorda John Manley, ministro da Indústria do Canadá: "A
Internet forçará os governos a
formular um novo modelo em
que o Estado estará aberto para
atendimento sete dias por semana e 24 horas por dia".
Fácil de falar, difícil de fazer, em
um mundo em que o governo, em
boa parte dos países, nem vai aos
cidadãos nem adianta os cidadãos
irem a ele, como bem se sabe no
Brasil.
De todo modo, se fosse possível
universalizar governos tão fantasticamente eficientes, que ajudassem todos a subir a montanha,
talvez se superasse a constatação
feita em Davos por Paul Krugman
(Harvard), um dos economistas
mais badalados do momento:
"Esse mundo novo não é amado.
De fato, ele é odiado".
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