São Paulo, #!L#Domingo, 06 de Fevereiro de 2000


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GLOBALIZAÇÃO
Dos 6 bilhões de pessoas do mundo, 3 bilhões nem iniciam a subida, pois vivem com até US$ 2 por dia
No mundo novo, poucos chegam ao pico

CLÓVIS ROSSI
enviado especial a Davos

Adolfo Oggi, presidente da Confederação Suíça, nasceu em um vale cercado pelos Alpes. Na juventude, ajudava o pai, responsável por obras de contenção de avalanches e como guia na montanha.
Dessa experiência, extraiu a lição de que "a única coisa que importa não é ser o primeiro a chegar ao pico, mas fazer com que todos cheguem e, depois, desçam de volta com toda a segurança".
Oggi utilizou esse ensinamento, no discurso com que inaugurou o encontro anual 2000 do Fórum Econômico Mundial, na comparação com a economia moderna: seria igualmente fundamental que todos chegassem ao cume, em segurança.
Pena que, na vida real, não seja assim. O número talvez mais repetido nas sessões deste ano foi terrível: 3 bilhões dos 6 bilhões de habitantes do planeta não conseguem nem começar a subir a montanha, porque vivem com até US$ 2 por dia.
"Sempre houve pobres e ricos no mundo", conforma-se o presidente da Indonésia, Abdurrahman Wahid.
É verdade, mas é igualmente verdade que a brecha entre ricos e pobres não fez senão ampliar-se no século que está terminando, de acordo com os dados esgrimidos por David Bryer, diretor-executivo da Oxfam, uma ONG (organização não-governamental) britânica das mais respeitadas do planeta.
No século passado, a renda dos 20% mais ricos era apenas três vezes superior à dos 20% mais pobres. Nos anos 30 deste século, passou a ser 30 vezes maior. Hoje, é 74 vezes maior, diz Bryer.
Pior: a revolução tecnológica por que passa o mundo tende a acentuar uma situação colocada nestes termos pelo presidente norte-americano Bill Clinton, ao discursar em Davos: "Poucos de nós vivemos na ponta da nova economia; demasiados vivem no limite da sobrevivência, sem meios para mover-se para cima".
Clinton sabe do que está falando. Em seu próprio país, nem o fato de estar atingindo o recorde histórico de 107 meses consecutivos de crescimento foi suficiente para aliviar a pobreza.
"O boom de uma década de fato ajudou pessoas de todas as categorias de renda, mas somente no ano passado a renda das famílias de rendimento médio recuperou os níveis de 1989. E a pobreza ainda excede os níveis de 1960", diz Laura D'Andrea Tyson, reitora da Escola de Negócios da Universidade de Berkeley (Califórnia).
Se é assim na economia norte-americana, com todos os seus recordes, no resto do mundo só pode ser pior, como é óbvio.
É natural, por isso, que Philip Jennings, secretário-geral da recém-criada Rede Internacional de Sindicatos, para abrigar trabalhadores de colarinho branco, diga que a nova economia, assentada na tecnologia da informação, vai dividir o mundo em "celebridades e serventes".
Não são apenas lideranças sindicais como Jennings que acreditam no aumento da distância entre os que estão no cume da montanha e os que não saem do sopé.
Mesmo o empresariado tem idêntica sensação, a julgar por pesquisa instantânea feita durante uma das sessões do fórum de Davos. Segundo a pesquisa, 63% disseram acreditar que a Internet, a ferramenta essencial da "nova economia", vai aumentar a brecha entre ricos e pobres.
O que, de resto, é absolutamente natural: "Como levar o potencial para fazer uso dessa tecnologia para os 3 bilhões de pessoas que vivem com menos de US$ 2 por dia?", pergunta, por exemplo, Charles Holliday, presidente da DuPont.
A brecha na "nova economia" será multifacetada, a julgar pelo que se disse em Davos.
Numa ponta, a velha divisão entre países desenvolvidos e em desenvolvimento só tende a se acentuar. Afinal, apenas 7% das empresas dos países em desenvolvimento estão fazendo os investimentos necessários para tirar pleno proveito das novas tecnologias, conforme pesquisa citada por James Schiro, executivo-chefe da Pricewaterhouse Coopers.
Mesmo a brecha entre ricos e um pouco menos ricos pode se acentuar, se a "nova economia" ficar centrada no comércio eletrônico.
Pesquisa do banco HSBC mostra que 80% do movimento gerado pelo comércio eletrônico internacional origina-se em firmas norte-americanas, contra apenas 10% na Europa e 5% na Ásia.
Números que reforçam a sensação empírica manifestada por Victor Halberstadt, professor de economia pública da Universidade Holandesa de Leiden: "O efeito coletivo da nova economia é visível nos Estados Unidos, mas é quase invisível na Europa".
Mas a tecnologia não apenas acentuará, eventualmente, antigas divisões entre ricos e pobres e entre regiões do mundo.
Provocará também o surgimento de "três novas classes de cidadãos", na visão do celebrado filósofo italiano Umberto Eco, professor da Universidade de Bolonha. São elas:
1 - O proletariado, que Eco prefere chamar agora de "prolex", que apenas vê televisão e só recebe imagens pré-fabricadas;
2 - A "pequena burguesia", que usa, sim, computadores, mas o faz de maneira passiva;
3 - A "nomenklatura", ou seja, os que dominam todas as facetas high-tech.
Sempre segundo Eco, o uso intensivo do computador provocará também o surgimento ou aumento da solidão.
"O lado negro (do uso de computadores) é que haverá menos e menos chances de interagir com pessoas, sentir os odores do corpo, apertar mãos."
Se é assim na vida pessoal, parece pior na vida coletiva. A economia tornou-se de tal forma dominante que está deixando em absoluto segundo plano outros aspectos da vida, como os sociais, os culturais e os políticos.
"Aparentemente, o problema do mundo de hoje é que economia e sociedade tomaram trilhas diferentes: a economia é globalizada e a sociedade, não", diz, por exemplo, Ronnie Chan, presidente da Hang Lung Development Company, de Hong Kong.
Pior: "É impossível globalizar a sociedade, por ser caracterizada pela língua, pelas tradições, pela cultura, pela história", diz Kurt Biedenkopf, ministro-presidente do Estado alemão da Saxônia.
Numa conferência em que muito se falou de e-commerce (comércio eletrônico), e-business (negócios eletrônicos), era inevitável que se cunhasse também a expressão "e-govern", ou governo eletrônico.
"Cuidado com governos que não abracem a Internet", previne Eric Hippeau, presidente da Ziff-Davis, conglomerado de mídia e tecnologia norte-americano.
Sempre atento aos modismos que fazem sucesso, o primeiro-ministro britânico, Tony Blair, captou o espírito da coisa. Anunciou, no discurso pronunciado durante o encontro anual: "Fixamos uma meta exigente: queremos nos tornar o melhor ambiente no mundo para o comércio eletrônico até 2002".
Como? "Pretendemos assegurar que o custo de acesso à Internet seja competitivo. E pretendemos que o comércio eletrônico desempenhe um papel mais dominante nas atividades do governo, dos indivíduos e dos negócios britânicos do que em qualquer outra parte do mundo em três anos."
É uma idéia que atravessa continentes. "Governos são ineficientes no mundo todo, e o único caminho para avançar é por meio de governança eletrônica", diz Chandrababu Nabu, ministro-chefe do Estado indiano de Andhra Pradesh.
Nesse mundo ideal de governo eletrônico, "os cidadãos não terão que procurar o governo por serviços, mas o inverso", diz Nabu.
Concorda John Manley, ministro da Indústria do Canadá: "A Internet forçará os governos a formular um novo modelo em que o Estado estará aberto para atendimento sete dias por semana e 24 horas por dia".
Fácil de falar, difícil de fazer, em um mundo em que o governo, em boa parte dos países, nem vai aos cidadãos nem adianta os cidadãos irem a ele, como bem se sabe no Brasil.
De todo modo, se fosse possível universalizar governos tão fantasticamente eficientes, que ajudassem todos a subir a montanha, talvez se superasse a constatação feita em Davos por Paul Krugman (Harvard), um dos economistas mais badalados do momento: "Esse mundo novo não é amado. De fato, ele é odiado".


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