São Paulo, segunda-feira, 06 de março de 2000


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OPINIÃO ECONÔMICA
O espírito da coisa

JOÃO SAYAD
A melhor solução para a cerveja é a fusão da Kaiser com a AmBev. Neoliberais brasileiros não entendem de concorrência. Parecem estrangeiros dançando no Carnaval.
Quando turista pula o Carnaval, de calça branca e camisa listrada, imita o passo da porta-bandeira, ri para o fotógrafo, canta, transpira, mas não é Carnaval. Não entendeu o espírito da coisa.
Neoliberais brasileiros já produziram quatro anos de pesadelo macroeconômico com câmbio sobrevalorizado, juros altos, crescimento da dívida interna e desindustrialização. Não precisava ter ocorrido nem era neoliberal.
Mal jogamos fora os jornais velhos com as justificativas e teorias do período e começamos outro pesadelo, agora microeconômico: a política de incentivo à concorrência no Brasil.
No final do século 19 e início do 20, os Estados Unidos estabeleceram legislação para limitar e regular a formação de grandes corporações com as leis antitruste. Depois vieram leis contra as fusões e a formação de cartéis.
Inicialmente a preocupação era política: a vida democrática requer certa limitação ao tamanho das empresas, que não podem se tornar maiores ou mais poderosas do que as organizações políticas (sob esse ponto de vista, a legislação deveria dar atenção prioritária à imprensa e à televisão).
No espírito das leis antitruste outros países deveriam incentivar o crescimento das suas empresas nacionais para que pudessem concorrer com os gigantes americanos. No século 19, França, Itália, Rússia e Alemanha apoiavam o crescimento e a conglomeração de suas empresas para concorrer com os líderes industriais, a Inglaterra, antes, e os Estados Unidos, mais tarde.
Além do Brasil, apenas o Japão aplicou leis semelhantes no final da Segunda Guerra. Foi o general MacArthur quem obrigou a cisão dos famosos "zaibatsu", durante a ocupação americana.
Atualmente gigantes multinacionais se fundem em todos os setores: Internet, bancos, seguradoras, montadoras de automóveis, indústrias químicas, farmacêuticas, de alimentação, tudo se funde.
Vinte anos de neoliberalismo e muitos governos republicanos nos Estados Unidos fizeram com que o Departamento de Justiça aliviasse a política antitruste, com a exceção honrosa do caso da Microsoft.
No Brasil, a política ganha força recentemente, vem junto com o surto neoliberal e as reformas.
Mas a política é dilacerada por objetivos conflitantes -defesa da concorrência na economia brasileira e incentivos a qualquer custo para a entrada de empresas estrangeiras (sofremos de fobia de xenofobia).
Enquanto o Cade coloca obstáculos à fusão da Brahma com a Antarctica, damos crédito subsidiado e incentivos fiscais a montadoras estrangeiras; cogitamos vender a indústria petroquímica à Dow Chemical, que já domina o setor na Argentina e é muito grande no mercado internacional; apoiamos a venda de refinarias da Petrobras às concorrentes internacionais (as "sete irmãs"?) que dominam o mercado mundial para incentivar a concorrência nacional.
Bancos do mundo inteiro se fundem, transformam-se em gigantes, vêm ao Brasil, compram muitos bancos sem que o Cade tenha nada a dizer.
A Embraer vende participação do capital para concorrentes estrangeiros que sentarão no Conselho de Administração para conhecer a estratégia da empresa brasileira.
O resultado seria divertido, se não fosse trágico, enquanto um grupo de neobrasileiros se preocupa com o "gigantismo" das empresas nacionais e a concorrência e outro grupo incentiva a entrada de gigantes internacionais com poder de monopólio.
Não tem nada a ver com a lei antitruste. Não aumenta a concorrência nem defende a liberdade.
Parece briga na porta do baile de Carnaval: um leão-de-chácara segura a empresa brasileira enquanto outro chama um grandão estrangeiro para socar.


João Sayad, 53, economista, professor da Faculdade de Economia e Administração da USP e ex-ministro do Planejamento (governo José Sarney); é autor de "Que País é Este?" (editora Revan); escreve às segundas-feiras nesta coluna.
E-mail: jsayad@ibm.net







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