São Paulo, sábado, 06 de maio de 2006

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ENTREVISTA

Economista americano diz que, após Consenso de Washington, região combina ortodoxia, populismo e nacionalismo

Krugman vê fase de "experimentação" na AL

FERNANDO CANZIAN
DA REPORTAGEM LOCAL

O economista norte-americano Paul Krugman afirma que a América Latina entrou em uma fase de "experimentação". O novo período combina aspectos de ortodoxia econômica, populismo e arroubos de nacionalismo, como no recente caso da Bolívia.
"O que passa na região não é nada apocalíptico, mas uma "experimentação". Alguns erros serão cometidos, mas isso é, provavelmente, uma boa coisa", afirma.
Krugman acredita que uma guinada à esquerda teria "necessariamente" de acontecer na América Latina depois do "fracasso" das políticas neoliberais, que "não entregaram o que prometeram" aos eleitores na região.
Economista badalado nos EUA e com doutorado pelo MIT (Massachusetts Institute of Technology), Krugman acaba de reunir em novo livro algumas de suas colunas publicadas no diário "The New York Times", onde escreve desde 1999. "The Great Unraveling" (traduzido no Brasil como "A Desintegração Americana") traz reflexões e críticas sobre George W. Bush, a direita americana e explora como a "exuberância" da América deu lugar ao pessimismo social e econômico.
Leia entrevista telefônica que Krugman concedeu ontem dos EUA à Folha:
 

Folha - O sr. é um crítico ferrenho da política econômica do governo George W. Bush. No entanto, os EUA continuam há anos sendo o principal motor da economia mundial e o país cresceu a uma taxa de 4,8% no primeiro trimestre de 2006. O que o sr. diz?
Paul Krugman -
Não está mal. Você me pergunta por que ainda não aconteceram as coisas ruins que pessoas como eu dizem que podem acontecer. Acho que há duas coisas aí: a primeira é a atual "bolha" no setor imobiliário. Muito do crescimento nos últimos três anos tem sido estimulado pelos preços dos imóveis e pelos empréstimos que os americanos tomam dando suas casas como garantia. A outra é a longa e surpreendente determinação de outros países em continuarem financiando o déficit em conta corrente dos EUA.
Na minha opinião, temos duas "bolhas" aí, uma do setor imobiliário e a outra do dólar sendo financiado pelos bancos centrais de outros países. Elas, eventualmente, vão murchar, com graves conseqüências.

Folha - Então o sr. continua pessimista em relação à economia americana.
Krugman -
Sim, mas não extremamente. Há uma chance de um "pouso forçado" nos EUA de, eu diria, 50%. Mas não será nada como a Argentina na época da desvalorização (2001).

Folha - O que há de errado com os americanos, que não conseguem parar de consumir demais e poupar de menos, acentuando esses desequilíbrios nas contas do país?
Krugman -
A diminuição da taxa da poupança é o outro lado do boom imobiliário. É o resultado desse efeito riqueza, que foi rapidamente convertido em gastos e compras.

Folha - O sr. também é um grande crítico da invasão do Iraque. Como vê essa herança da gestão Bush?
Krugman -
É cara. Os gastos com a invasão estão se aproximando hoje de 1% do PIB (Produto Interno Bruto) americano e estamos perdendo terreno a cada dia no país. Creio que daqui a três ou quatro anos estaremos fora do Iraque, de um jeito ou de outro. No meio tempo, é um custo substancial, e a guerra tem tirado 1,5 milhão de barris de petróleo/dia do mercado.

Folha - Como o sr. explica a América? Se existe uma chance de 50% de um "pouso forçado" na economia e o Iraque se transformou no Vietnã de Bush, como o partido democrata e as forças de oposição estão tão perdidas?
Krugman -
Se houvesse uma eleição hoje, seguramente os democratas ganhariam o controle do Congresso. Bush é hoje um presidente totalmente impopular e houve uma série de desilusões em relação a ele. O ano de 2004 (da reeleição de Bush) foi o ano das manifestações a favor da Casa Branca e da Guerra no Iraque e de uma grande tentativa de mostrar as coisas de um jeito melhor do que realmente estavam. Tudo não passou de uma fraude, e o público acabou comprando esse cenário favorável. E esses caras (os republicanos) são muito bons em política. Muitos votaram não a favor de Bush, mas contra John Kerry (o candidato democrata), apresentado como não-confiável em um momento delicado como aquele, do país em meio a uma guerra.

Folha - O sr. poderia falar um pouco sobre a situação da América Latina e do Brasil?
Krugman -
Sou completamente ignorante em relação ao Brasil. Fiz muito pouca pesquisa a respeito. Não poderia nem dizer qual é a taxa de crescimento atual...

Folha - Está entre 3,5% e 4%.
Krugman -
Há uma boa notícia em relação ao Brasil. O país não é um assunto muito interessante. Com tantos problemas nos EUA, a tendência é olhar para fora apenas quando há grandes problemas acontecendo.

Folha - Temos algumas novidades na região, como uma profusão de governos de esquerda. Chávez, Lula, Kirchner e Evo Morales. O último acaba de nacionalizar a produção de gás natural.
Krugman -
Essa é uma história interessante. Basicamente, acho que é inevitável que haja governos de esquerda na América Latina. Não devemos acreditar, como alguns aqui nos EUA, que alguns desses governos transformem seus países em Cuba. Mas uma guinada populista era algo plenamente garantido diante das promessas feitas pelo chamado Consenso de Washington (conjunto de regras liberais recomendadas à região nos anos 90) e o tão pouco que acabou sendo entregue.

Folha - O sr. diria que isso advém do fato de o prometido não ter sido entregue ou de as reformas não terem sido devidamente implementadas, deixando as economias em um cenário complexo, de arremedo de capitalismo?
Krugman -
É um critério muito duro considerar que a resposta para cada fracasso é o que você não fez certo. O país que tenho prestado mais atenção é a Argentina, que foi considerada a queridinha do mercado financeiro internacional durante muitos anos. O resultado foi catastrófico. Mas, quando a Argentina voltou a ser um país heterodoxo, quebrando regras e tendo punições mínimas, ela teve uma recuperação extremamente rápida. Como esperar que os outros países olhem para isso e continuem a ser ortodoxos?
Creio que a região esteja passando por um momento de "experimentações". Não vejo isso como uma mudança radical em direção a uma nova ideologia, uma volta ao socialismo ou a cenários de inflação descontrolada.

Folha - Uma das diferenças é que países como a Argentina, o Brasil, e mesmo a Bolívia estão se esforçando para manter um equilíbrio ou fazer superávits fiscais.
Krugman -
Sim, a responsabilidade fiscal ainda está presente e não vemos uma nacionalização completa dos meios de produção ou um aumento de tarifas comerciais ou do protecionismo. Há uma prevenção em relação às regras do consenso dos anos 90, mas não um abandono completo de tudo aquilo. O que passa na região não é nada apocalíptico, mas uma "experimentação". Alguns erros serão cometidos, mas isso é, provavelmente, uma boa coisa.


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