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OPINIÃO ECONÔMICA
O caminho de São Gabriel
PAULO RABELLO DE CASTRO
A Folha estampou como foto
da Primeira Página da sua
edição de sexta-feira passada a
estrada que leva a São Gabriel,
rodovia BR-290, que corta o Estado do Rio Grande do Sul de leste a
oeste, até a fronteira com o Uruguai. Na foto, a marcha de um
grupo do MST, vigiada por cavaleiros ruralistas postados à margem da estrada. Entre os dois grupos estremecidos, a Brigada Militar (PM gaúcha) e a Polícia Rodoviária Federal.
O grupo do MST se desloca na
direção de São Gabriel. Entre sexta-feira e domingo, quando passei por essa estrada, um grupo
mirrado do MST permanecia
acampado em barracas improvisadas à margem da BR. A vida
parecia ter voltado ao normal naquela região. Mas só nas aparências. A tensão continua elevada. E
crescerá ainda mais à medida
que, pelo Brasil afora, forem
acontecendo ocupações de propriedades rurais pelos autodenominados sem-terra.
São Gabriel é uma região que
produz muita soja e arroz, além
da pecuária, tradicional no pampa gaúcho. O Brasil urbano se alimenta do trabalho rural de São
Gabriel. Ali encontrei os mesmos
produtores de 10 ou 20 anos atrás.
Não necessariamente as mesmas
pessoas, mas o mesmo perfil de
gente, dedicada a fazer direito o
que, ao longo dos anos, vem se
transformando numa tarefa técnica e financeiramente cada vez
mais complexa -plantar, tratar,
colher e, sobretudo, comercializar, evitando o risco sempre presente de um prejuízo se a produtividade da lavoura ou se o preço
final calharem de ficar abaixo do
esperado.
Os manifestantes sem terra da
estrada de São Gabriel também
querem uma "beirada" do resultado desse sofisticado processo
econômico agrícola. Marcham
sobre a terra de São Gabriel do
mesmo jeito que um grupo de
sem-letras marcharia sobre uma
universidade, para ocupá-la. Em
busca do conhecimento e da vantagem de renda auferida pelos
que alcançam um diploma universitário, era de esperar que os
desprovidos dessa chance se lançassem sobre as bibliotecas e os
prédios de universidades. Nesse
caso, talvez alguém achasse isso
estranho ou destituído de razão,
já que não é pela ocupação do espaço universitário que se melhora
de vida, mas pela apreensão de
algo invisível -o saber- transmitido voluntariamente por
quem o domina a outro que o recebe. O saber é uma escada, como
também o é qualquer outra forma de saber, inclusive o do campo.
Por isso, nada é mais patético
que a marcha dos desprovidos de
terra sobre o espaço físico onde se
realiza um processo mais invisível
do que o visível, mais virtual do
que palpável (apesar dos milhares de toneladas produzidas),
mais fiduciário, enfim, do que
mecânico. Os sem-terra marcham, literalmente, contra moinhos de vento. E o país, coitado,
não ganha nada com isso. Mas a
taxa de risco político, nervo exposto dos mercados financeiros,
essa, sim, explode cada vez que a
tensão social implícita irrompe,
ameaçando o tênue equilíbrio entre os que têm muito e os muitos
que não têm quase nada.
No final, o sofrido povo terá sofrido mais um pouco, pela taxa de
risco que subiu, pelos juros que
não caíram mais, pelo dólar que
reagiu e pelo conflito malsucedido da marcha que não deu certo.
A estrada de São Gabriel vai ficando cada vez mais esburacada
à medida que nos aproximamos
do destino. Não é figura literária.
É buraco mesmo. Há um comércio próspero de borracheiros de
beira de estrada, para atender os
acidentados nos trechos quase fatais onde evitar cair nos buracos
se torna tarefa impossível.
A BR-290 é uma espécie de rodovia do Mercosul, com placas sinalizadoras em espanhol, uma
delicadeza do administrador (?)
federal da rodovia com os irmãos
de além-fronteira. Sendo uma rodovia do tipo cartão de visitas
que, ademais, escoa para os portos boa parte das divisas produzidas no interior do Estado, se poderia supor que o governo federal,
no trecho que administra, fizesse
a sua parte de manter a via transitável. Afinal, não custaria mais
que algumas horas de juros no
transporte financeiro da dívida
pública.
Mas não. O trecho federal é
uma lástima, abandonado que
está à própria sorte dos motoristas (e dos sem-terra) que por ali
transitam. Naquela estrada por
onde escoam milhões e milhões de
dólares de riquezas, também passam os manifestantes meio-romeiros que peregrinam a São Gabriel, buscando o milagre que o
santo não poderá lhes proporcionar. Milagre da renda melhorada, milagre dos conhecimentos
adquiridos ou mesmo da nova
oportunidade de trabalho conseguida. Nenhum desses milagres
será possível ao final da marcha,
a não ser aquele que adviesse da
expiação histórica e do aprendizado de um renhido confronto.
Além do problema do santo, o
movimento dos sem-terra tem
outro impasse sério com o fazedor
de milagres de plantão, que é o
governo. Como poderá operar o
grande milagre de recobrir o fosso
da ignorância e das diferenças de
renda o governo que nem consegue tapar os buracos de uma rodovia da produção?
Está aí um enigma sobre o caminho que leva a São Gabriel.
Paulo Rabello de Castro, 54, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do Instituto Atlântico e chairman da SR Rating, agência brasileira de classificação de riscos de crédito. Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.
E-mail -
rabellodecastro@uol.com.br
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