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São Paulo, quarta-feira, 06 de agosto de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

O caminho de São Gabriel

PAULO RABELLO DE CASTRO

A Folha estampou como foto da Primeira Página da sua edição de sexta-feira passada a estrada que leva a São Gabriel, rodovia BR-290, que corta o Estado do Rio Grande do Sul de leste a oeste, até a fronteira com o Uruguai. Na foto, a marcha de um grupo do MST, vigiada por cavaleiros ruralistas postados à margem da estrada. Entre os dois grupos estremecidos, a Brigada Militar (PM gaúcha) e a Polícia Rodoviária Federal.
O grupo do MST se desloca na direção de São Gabriel. Entre sexta-feira e domingo, quando passei por essa estrada, um grupo mirrado do MST permanecia acampado em barracas improvisadas à margem da BR. A vida parecia ter voltado ao normal naquela região. Mas só nas aparências. A tensão continua elevada. E crescerá ainda mais à medida que, pelo Brasil afora, forem acontecendo ocupações de propriedades rurais pelos autodenominados sem-terra.
São Gabriel é uma região que produz muita soja e arroz, além da pecuária, tradicional no pampa gaúcho. O Brasil urbano se alimenta do trabalho rural de São Gabriel. Ali encontrei os mesmos produtores de 10 ou 20 anos atrás. Não necessariamente as mesmas pessoas, mas o mesmo perfil de gente, dedicada a fazer direito o que, ao longo dos anos, vem se transformando numa tarefa técnica e financeiramente cada vez mais complexa -plantar, tratar, colher e, sobretudo, comercializar, evitando o risco sempre presente de um prejuízo se a produtividade da lavoura ou se o preço final calharem de ficar abaixo do esperado.
Os manifestantes sem terra da estrada de São Gabriel também querem uma "beirada" do resultado desse sofisticado processo econômico agrícola. Marcham sobre a terra de São Gabriel do mesmo jeito que um grupo de sem-letras marcharia sobre uma universidade, para ocupá-la. Em busca do conhecimento e da vantagem de renda auferida pelos que alcançam um diploma universitário, era de esperar que os desprovidos dessa chance se lançassem sobre as bibliotecas e os prédios de universidades. Nesse caso, talvez alguém achasse isso estranho ou destituído de razão, já que não é pela ocupação do espaço universitário que se melhora de vida, mas pela apreensão de algo invisível -o saber- transmitido voluntariamente por quem o domina a outro que o recebe. O saber é uma escada, como também o é qualquer outra forma de saber, inclusive o do campo.
Por isso, nada é mais patético que a marcha dos desprovidos de terra sobre o espaço físico onde se realiza um processo mais invisível do que o visível, mais virtual do que palpável (apesar dos milhares de toneladas produzidas), mais fiduciário, enfim, do que mecânico. Os sem-terra marcham, literalmente, contra moinhos de vento. E o país, coitado, não ganha nada com isso. Mas a taxa de risco político, nervo exposto dos mercados financeiros, essa, sim, explode cada vez que a tensão social implícita irrompe, ameaçando o tênue equilíbrio entre os que têm muito e os muitos que não têm quase nada.
No final, o sofrido povo terá sofrido mais um pouco, pela taxa de risco que subiu, pelos juros que não caíram mais, pelo dólar que reagiu e pelo conflito malsucedido da marcha que não deu certo.
A estrada de São Gabriel vai ficando cada vez mais esburacada à medida que nos aproximamos do destino. Não é figura literária. É buraco mesmo. Há um comércio próspero de borracheiros de beira de estrada, para atender os acidentados nos trechos quase fatais onde evitar cair nos buracos se torna tarefa impossível.
A BR-290 é uma espécie de rodovia do Mercosul, com placas sinalizadoras em espanhol, uma delicadeza do administrador (?) federal da rodovia com os irmãos de além-fronteira. Sendo uma rodovia do tipo cartão de visitas que, ademais, escoa para os portos boa parte das divisas produzidas no interior do Estado, se poderia supor que o governo federal, no trecho que administra, fizesse a sua parte de manter a via transitável. Afinal, não custaria mais que algumas horas de juros no transporte financeiro da dívida pública.
Mas não. O trecho federal é uma lástima, abandonado que está à própria sorte dos motoristas (e dos sem-terra) que por ali transitam. Naquela estrada por onde escoam milhões e milhões de dólares de riquezas, também passam os manifestantes meio-romeiros que peregrinam a São Gabriel, buscando o milagre que o santo não poderá lhes proporcionar. Milagre da renda melhorada, milagre dos conhecimentos adquiridos ou mesmo da nova oportunidade de trabalho conseguida. Nenhum desses milagres será possível ao final da marcha, a não ser aquele que adviesse da expiação histórica e do aprendizado de um renhido confronto.
Além do problema do santo, o movimento dos sem-terra tem outro impasse sério com o fazedor de milagres de plantão, que é o governo. Como poderá operar o grande milagre de recobrir o fosso da ignorância e das diferenças de renda o governo que nem consegue tapar os buracos de uma rodovia da produção?
Está aí um enigma sobre o caminho que leva a São Gabriel.


Paulo Rabello de Castro, 54, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do Instituto Atlântico e chairman da SR Rating, agência brasileira de classificação de riscos de crédito. Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.
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rabellodecastro@uol.com.br


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