São Paulo, domingo, 7 de fevereiro de 1999

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VISÃO DE FORA

Desvalorização e erros passados

PIERRE SALAMA

Já não há jeito. Já foi feito, e da pior maneira possível: de supetão, quando teria sido possível controlar a desvalorização, que já era anunciada desde o final de 97, e coordenar a política econômica com os parceiros brasileiros no Mercosul para fortalecer a integração econômica, em vez de enfraquecê-la, como acontece agora.
Desde a crise asiática já estava claro que a desvalorização era necessária. Isso só não estava claro para os responsáveis políticos, que se apressaram em atribuir as dificuldades primeiro aos asiáticos e depois aos russos e em negar-se a reavaliar os pontos fortes e fracos do Brasil. A desvalorização foi realizada nas piores condições, na medida em que, desde o final de 1997, as taxas de juros atingem níveis astronômicos e a recessão já está presente, com seu cortejo de dificuldades para os setores mais humildes da população.
De fato, a situação final não é motivo de alegria para ninguém. Chegou a hora, finalmente, de avaliar o que se passou, repensar o todo, parar de reagir isoladamente a cada oscilação do mercado e deixar de tomar medidas contraditórias, como favorecer a baixa dos juros em um dia e, no dia seguinte, elevá-los. Chegou a hora de submeter-se menos ao FMI, de estabelecer uma hierarquia de problemas, definir a estratégia das modificações da política econômica em função desses objetivos. Essa é hoje a primeira prioridade.
Antes de mais nada, vale constatar o seguinte. 1) Os desníveis sociais aumentaram; a renda dos mais pobres diminuiu em 1998 mais do que diminuíra em 1997, e o desemprego cresceu, assim como a precariedade do trabalho. 2) A desaceleração da atividade econômica é real; a balança comercial e a balança de conta corrente estão altamente deficitárias, e esperar que o déficit comercial possa ser reduzido unicamente via recessão significa esquecer que a recessão gera menos receitas fiscais e, portanto, se paga com um déficit orçamentário ainda maior, a não ser que se consiga promover cortes suficientes nos gastos e uma redução no déficit externo. 3) As taxas de juros se encontram num nível muito alto, e a aposta de fazê-las cair significativamente fracassou. Elas geraram desequilíbrios insustentáveis nas contas públicas, e isso, por sua vez, favoreceu a especulação e a recessão. Países como o México e a Argentina conhecem muitos aspectos dessa mesma lógica de "economia-cassino", já que precisaram da entrada de capitais cada vez maiores para cobrir os déficits cada vez mais elevados de suas balanças comerciais e de conta corrente (US$ 3,8 bilhões e US$ 9,5 bilhões na Argentina em 1996 e 1997, e US$ 8,7 bilhões nos três primeiros trimestres de 1998). Apesar disso, adotam taxas de juros bastante inferiores às que se encontram em vigor no Brasil.
Brasil, México e Argentina possuem regimes cambiais diferentes. No regime mexicano, a moeda é flutuante e, de tempos em tempos, as autoridades intervêm no mercado cambial. A Argentina decidiu dolarizar sua economia, praticando o "currency board" (mais conhecido como plano de conversibilidade). Assim, vale indagar se a opção por juros suportáveis implica optar entre a via mexicana ou aquela adotada pela Argentina.
Os objetivos primeiros deveriam ser: 1) reduzir as desigualdades sociais, praticando uma política de redistribuição mais intensa e, sobretudo, um esforço mais contínuo nas áreas de saúde e educação (primária e secundária). A participação dessas áreas nos gastos públicos deveria crescer, visando reduzir a fratura social, fonte do apartheid social, em vez de diminuir para compensar parcialmente a elevação dos juros sobre a dívida interna, como já foi proposto em algumas ocasiões. 2) Reestimular a atividade econômica, o que por si só implica uma redução acentuada dos juros e, portanto, o fim de sua manipulação, em vista dos efeitos devastadores que esta exerce sobre as contas públicas e a atividade econômica.
Assim, não se trata tanto de aumentar as despesas públicas quanto de modificar a maneira como são divididas, em detrimento da parte destinada a pagar os juros da dívida crescente. Isso não se traduz necessariamente numa alta considerável da inflação. Aliás, a inflação já deixou de ser o inimigo público número um. É fato que a desvalorização provoca movimentos inflacionários, mas estes podem ser contidos sem que sejam elevados os juros, já muito altos (o estudo das desvalorizações promovidas nos anos 90 na Europa ou até mesmo no México o mostra). Uma alta moderada dos preços chega a ser desejável, já que seria positiva para o crescimento econômico e o possível aumento da renda dos mais desfavorecidos.
As críticas apresentadas pelos adversários dessa nova política econômica são conhecidas: uma hierarquização desse tipo não acabaria com a fuga de capitais e a moeda nacional continuaria a cair, o que implicaria, em termos matemáticos, o aumento, em reais, das dívidas contraídas em dólares. Assim, o que não fosse provocado pela alta dos juros o seria pela queda no valor da moeda.
É importante fazer duas observações, a primeira das quais lógica: afirmar isso é também reconhecer, pelo contrário, até que ponto era perigosa a política econômica baseada num funcionamento tipo "economia-cassino" e até que ponto dar continuidade a ela é perigoso e custa caro.
A outra é de ordem mais econômica: nada permite afirmar essa eventualidade, e existe uma política para minimizar esses riscos. Com a desvalorização já presente e, infelizmente, promovida às pressas, é preciso trabalhar com ela e deixar que o mercado determine a taxa de câmbio. Uma intervenção nos juros, além de não ter eficácia comprovada contra as fugas de capital -como já pôde ser visto-, em pouquíssimo tempo agrava os déficits públicos e, com isso, alimenta a especulação.
Assim, deixar a moeda flutuar por algum tempo, sem elevar os juros, constitui a solução menos ruim; pode-se esperar que, após a desvalorização acentuada, a moeda volte a se valorizar levemente, uma vez recuperada a calma e confirmada a retomada econômica.
Essa hipótese é digna de crédito, como prova o exemplo do México entre 95 e o final de 97. Enfim, esse regime cambial é menos favorável à entrada de capitais de curto prazo do que a manutenção do câmbio fixo, com ou sem banda.
Assim, já que é preciso fazer alguma coisa, seria mais aconselhável, por algum tempo, escolher o modelo mexicano em vez do argentino e estimular a economia sem elevar os déficits de contas públicas, já consideráveis.


Tradução de Clara Allain



Quem é
PIERRE SALAMA
economista francês, especialista em América Latina, é professor da Universidade de Paris-13 e integrante do Grupo de Pesquisa sobre Estado, Internacionalização de Técnicas e Desenvolvimento.





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