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VISÃO DE FORA
Desvalorização e erros passados
PIERRE SALAMA
Já não há jeito. Já foi feito, e da
pior maneira possível: de supetão, quando teria sido possível
controlar a desvalorização, que
já era anunciada desde o final
de 97, e coordenar a política econômica com os parceiros brasileiros no Mercosul para fortalecer a integração econômica, em
vez de enfraquecê-la, como
acontece agora.
Desde a crise asiática já estava
claro que a desvalorização era
necessária. Isso só não estava
claro para os responsáveis políticos, que se apressaram em
atribuir as dificuldades primeiro aos asiáticos e depois aos russos e em negar-se a reavaliar os
pontos fortes e fracos do Brasil.
A desvalorização foi realizada
nas piores condições, na medida
em que, desde o final de 1997, as
taxas de juros atingem níveis astronômicos e a recessão já está
presente, com seu cortejo de dificuldades para os setores mais
humildes da população.
De fato, a situação final não é
motivo de alegria para ninguém. Chegou a hora, finalmente, de avaliar o que se passou, repensar o todo, parar de reagir
isoladamente a cada oscilação
do mercado e deixar de tomar
medidas contraditórias, como
favorecer a baixa dos juros em
um dia e, no dia seguinte, elevá-los. Chegou a hora de submeter-se menos ao FMI, de estabelecer
uma hierarquia de problemas,
definir a estratégia das modificações da política econômica em
função desses objetivos. Essa é
hoje a primeira prioridade.
Antes de mais nada, vale constatar o seguinte. 1) Os desníveis
sociais aumentaram; a renda
dos mais pobres diminuiu em
1998 mais do que diminuíra em
1997, e o desemprego cresceu, assim como a precariedade do trabalho. 2) A desaceleração da
atividade econômica é real; a
balança comercial e a balança
de conta corrente estão altamente deficitárias, e esperar que
o déficit comercial possa ser reduzido unicamente via recessão
significa esquecer que a recessão
gera menos receitas fiscais e,
portanto, se paga com um déficit orçamentário ainda maior, a
não ser que se consiga promover
cortes suficientes nos gastos e
uma redução no déficit externo.
3) As taxas de juros se encontram num nível muito alto, e a
aposta de fazê-las cair significativamente fracassou. Elas geraram desequilíbrios insustentáveis nas contas públicas, e isso,
por sua vez, favoreceu a especulação e a recessão. Países como o
México e a Argentina conhecem
muitos aspectos dessa mesma
lógica de "economia-cassino",
já que precisaram da entrada de
capitais cada vez maiores para
cobrir os déficits cada vez mais
elevados de suas balanças comerciais e de conta corrente
(US$ 3,8 bilhões e US$ 9,5 bilhões na Argentina em 1996 e
1997, e US$ 8,7 bilhões nos três
primeiros trimestres de 1998).
Apesar disso, adotam taxas de
juros bastante inferiores às que
se encontram em vigor no Brasil.
Brasil, México e Argentina
possuem regimes cambiais diferentes. No regime mexicano, a
moeda é flutuante e, de tempos
em tempos, as autoridades intervêm no mercado cambial. A
Argentina decidiu dolarizar sua
economia, praticando o "currency board" (mais conhecido
como plano de conversibilidade). Assim, vale indagar se a opção por juros suportáveis implica optar entre a via mexicana
ou aquela adotada pela Argentina.
Os objetivos primeiros deveriam ser: 1) reduzir as desigualdades sociais, praticando uma
política de redistribuição mais
intensa e, sobretudo, um esforço
mais contínuo nas áreas de saúde e educação (primária e secundária). A participação dessas áreas nos gastos públicos deveria crescer, visando reduzir a
fratura social, fonte do apartheid social, em vez de diminuir
para compensar parcialmente a
elevação dos juros sobre a dívida interna, como já foi proposto
em algumas ocasiões. 2) Reestimular a atividade econômica, o
que por si só implica uma redução acentuada dos juros e, portanto, o fim de sua manipulação, em vista dos efeitos devastadores que esta exerce sobre as
contas públicas e a atividade
econômica.
Assim, não se trata tanto de
aumentar as despesas públicas
quanto de modificar a maneira
como são divididas, em detrimento da parte destinada a pagar os juros da dívida crescente.
Isso não se traduz necessariamente numa alta considerável
da inflação. Aliás, a inflação já
deixou de ser o inimigo público
número um. É fato que a desvalorização provoca movimentos
inflacionários, mas estes podem
ser contidos sem que sejam elevados os juros, já muito altos (o
estudo das desvalorizações promovidas nos anos 90 na Europa
ou até mesmo no México o mostra). Uma alta moderada dos
preços chega a ser desejável, já
que seria positiva para o crescimento econômico e o possível
aumento da renda dos mais desfavorecidos.
As críticas apresentadas pelos
adversários dessa nova política
econômica são conhecidas: uma
hierarquização desse tipo não
acabaria com a fuga de capitais
e a moeda nacional continuaria
a cair, o que implicaria, em termos matemáticos, o aumento,
em reais, das dívidas contraídas
em dólares. Assim, o que não
fosse provocado pela alta dos juros o seria pela queda no valor
da moeda.
É importante fazer duas observações, a primeira das quais lógica: afirmar isso é também reconhecer, pelo contrário, até
que ponto era perigosa a política econômica baseada num funcionamento tipo "economia-cassino" e até que ponto dar
continuidade a ela é perigoso e
custa caro.
A outra é de ordem mais econômica: nada permite afirmar
essa eventualidade, e existe uma
política para minimizar esses
riscos. Com a desvalorização já
presente e, infelizmente, promovida às pressas, é preciso trabalhar com ela e deixar que o mercado determine a taxa de câmbio. Uma intervenção nos juros,
além de não ter eficácia comprovada contra as fugas de capital -como já pôde ser visto-,
em pouquíssimo tempo agrava
os déficits públicos e, com isso,
alimenta a especulação.
Assim, deixar a moeda flutuar
por algum tempo, sem elevar os
juros, constitui a solução menos
ruim; pode-se esperar que, após
a desvalorização acentuada, a
moeda volte a se valorizar levemente, uma vez recuperada a
calma e confirmada a retomada
econômica.
Essa hipótese é digna de crédito, como prova o exemplo do
México entre 95 e o final de 97.
Enfim, esse regime cambial é
menos favorável à entrada de
capitais de curto prazo do que a
manutenção do câmbio fixo,
com ou sem banda.
Assim, já que é preciso fazer
alguma coisa, seria mais aconselhável, por algum tempo, escolher o modelo mexicano em vez
do argentino e estimular a economia sem elevar os déficits de
contas públicas, já consideráveis.
Tradução de
Clara Allain
Quem é
PIERRE SALAMA
economista francês, especialista em América
Latina, é professor da Universidade de Paris-13 e integrante do Grupo de Pesquisa sobre
Estado, Internacionalização de Técnicas e Desenvolvimento.
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