São Paulo, domingo, 7 de fevereiro de 1999

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TENDÊNCIAS INTERNACIONAIS

Brasil se aproxima de modelo econômico darwinista

GILSON SCHWARTZ
da Equipe de Articulistas

Darwinismo e capitalismo sempre tiveram algo em comum. Isso fica mais evidente nos momentos de crise. Mas o darwinismo econômico adquire hoje requintes de mistificação, pois os países mais pobres e periféricos estão sendo levados a adotar modelos econômicos cruéis por uma elite global que, nas horas vagas, teoriza sobre a "terceira via" (caso do presidente Clinton).
Darwinismo é deixar o sistema econômico operar livremente, esperando que ocorra uma seleção natural dos indivíduos, empresas, classes sociais, moedas e países mais fortes ou com maior capacidade de adaptação.
Houve momentos, desde o século 19, em que se tentou evitar ou compensar essa tendência ao darwinismo. A rigor, sempre se procurou uma "terceira via" (caminho intermediário entre o liberalismo total e o controle máximo por meio do Estado).
No atual momento, o darwinismo liberal ganha terreno exatamente onde está em jogo a soberania dos Estados: a moeda. Enquanto não houver mudanças no sistema financeiro internacional, valerá o império dos mais fortes.
Esse é o tema de Ethan B. Kapstein num artigo publicado na última edição do "World Policy Journal" ("A Global Third Way, Social Justice and the World Economy"). O exemplo mais cristalino de crueldade globalizante vem do século 19: o padrão ouro.
O sistema era uma camisa-de-ferro que reduzia a quase zero a possibilidade de os governos adotarem políticas econômicas consideradas irresponsáveis pelos banqueiros da city londrina. Mas, ao mesmo tempo, tornava igualmente impossíveis políticas sociais capazes de ao menos minimizar o sofrimento de trabalhadores e excluídos em geral.
Nos termos de Kapstein, o mecanismo econômico do padrão ouro era "simples e cruel".
Quando os países ficavam com suas contas externas desequilibradas, não tinham escolha senão cobrir seus compromissos externos com suas reservas em ouro. A "exportação" de ouro exigia uma elevação das taxas de juros no país afetado (com menos reservas, o país tinha de entrar numa dieta, pois não teria como importar mais). A taxa de câmbio, por definição, ficava estável.
Os juros mais altos poderiam até estimular alguns investidores a depositar seus recursos no país, ajudando assim a recuperar as reservas. O efeito combinado da atração de reservas e da redução de importações conduziria o país, em tese, de volta ao equilíbrio em suas contas externas.
Os efeitos desse modelo sobre as empresas e trabalhadores de cada país eram terríveis. O desemprego tornava-se crônico, enquanto os economistas afirmavam que tudo não passava de um aperto temporário. No longo prazo, alcançado novamente o equilíbrio, viria a prosperidade.
Sem redes de proteção social, tornaram-se clássicas as cenas de fome em massa e movimentos revolucionários de todas as estirpes e inclinações. Kapstein cita o ministro das Finanças da Rússia que declarava, em meio à fome dos anos 1890: "temos de exportar trigo, ainda que estejamos mortos".
Poucas décadas depois, a República de Weimar, na Alemanha, sucumbiu às pressões financeiras externas em meio a uma ameaçadora recessão interna. Nesse caso, o oportunista que levou a melhor chamava-se Adolf Hitler. Talvez não seja por acaso que ele tenha apenas reafirmado uma alucinada variante da ideologia de sobrevivência dos mais fortes.
Curiosamente, depois da guerra houve acordo em torno da criação de uma instituição cuja missão seria evitar ajustes tão cruéis, o FMI. Mas, com o tempo, os seus empréstimos de emergência passaram a incluir receitas de política econômica muito semelhantes àquelas que supostamente funcionavam sob o padrão ouro.
Kapstein lembra que a prioridade agora deveria ser a imposição de disciplina aos capitais altamente móveis que circulam pelo mundo, de preferência obrigando-os a pagar mais impostos para financiar a criação de novas redes de proteção social. O FMI, por enquanto, faz exatamente o oposto: impõe disciplina e aumento de impostos aos países desequilibrados, enquanto o cassino darwinista continua operando a todo o vapor.



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