São Paulo, domingo, 07 de julho de 2002

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Jogo perigoso

LUIZ GONZAGA BELLUZZO

Como se sentiria um cidadão quando soubesse que iria ser julgado por um juiz do PMDB ou investigado por um delegado do PT?
A escuta telefônica ardilosamente executada pela Polícia Federal para bisbilhotar Lula é o mais recente episódio da novela "A derrocada das instituições". De uns tempos para cá, as disputas políticas e eleitorais têm sido marcadas pela insana tentativa dos partidos políticos -sem exceção- de usar os órgãos do Estado para atingir os adversários.
Não é de hoje que fenece o espírito do respeito à lei e agiganta-se a ferocidade dos que pretendem resolver os conflitos com o exercício puro e simples das próprias razões. Tão grave quanto a impunidade é a punição executada ao arrepio da lei e da decisão jurisdicional independente.
Nada pode ser mais trágico para uma sociedade do que a particularização da prestação da justiça. No Brasil, essa particularização está-se manifestando por meio da penetração insidiosa dos interesses partidários nos órgãos encarregados de vigiar e punir. A contaminação partidária tem avançado sem nenhuma reação dos que, embora percebam o fenômeno e o abominem, preferem recolher-se diante da contundência e da ousadia dos que buscam, a qualquer custo, a intimidação dos inimigos, desafetos ou simples adversários políticos.
É urgente impor limites à ação pessoal e atrabiliária de autoridades atraídas pelos frêmitos e cintilações da "sociedade do espetáculo", o "brilhareco" de 15 minutos de fama. As recentes manifestações de autoridades sobre a testemunha anônima no caso de Santo André são um exemplo impecável de como os deveres republicanos se dissolvem diante dos esgares incontroláveis da subserviência ao governante de turno, coadjuvada pelo corporativismo mais escancarado.
Ademais, as relações promíscuas entre as autoridades judiciais e a mídia colocam os cidadãos brasileiros diante da pior das incertezas: a absoluta imprecisão dos limites da legalidade.
As garantias da publicidade do procedimento legal são, na verdade, uma defesa do cidadão acusado -e ainda inocente- contra os arcanos do poder, sobretudo do poder não-eleito. Pois essas conquistas da modernidade, das quais não se pode abrir mão, vêm sendo pisoteadas por quem deveria defendê-las. Ocultam da sociedade, em cujo nome dizem agir, a dedicação com que laboram para tecer a corda em que enforcarão as garantias individuais. É comum e corriqueira entre nós a transformação das prerrogativas funcionais em privilégios individuais e pessoais.
É a velha arrogância oligárquica nutrida por uma certeza: são todos da mesma turma, aquela que manda e desmanda. Há um trânsito contínuo de pessoas, de dinheiro e de influência entre as esferas do poder: o big business, a grande política, a burocracia pública e as corporações do mass media. E, muito mais que isso, há a formação de uma cultura comum.
O momento americano mostra que o capitalismo neoliberal é a consagração da santa aliança entre os meios de comunicação, o poder econômico e as lideranças políticas corruptas. Daí a escalada de fraudes empresariais, a omissão diante do crime organizado e o uso da coisa pública para fins privados. Isso suscita a perda de legitimidade do poder e estimula o vale-tudo entre as burocracias no interior do Estado, desfigurando a soberania.
Entre as aberrações de nossa época, certamente a menor não é o abuso por parte de governantes ou funcionários que, a pretexto de acelerar as reformas, enfrentar crises ou fazer justiça, violam sistematicamente as leis, cuja observância têm o dever funcional de garantir.
A concentração e a confusão de poderes são responsáveis por dois fenômenos gêmeos, ambos funestos para a ordem democrática: a apatia popular e a busca de heróis vingadores, capazes de limpar a cidade (ou o país), ainda que isso custe a devastação das garantias individuais. Nessa cruzada antidemocrática, militam os governantes que editam e reeditam medidas provisórias, os senadores que invocam as próprias virtudes para justificar a violação do decoro parlamentar, os procuradores que fazem gravações clandestinas ou inventam provas e os jornalistas que, em nome de uma "boa causa", tentam manipular e ludibriar a opinião pública.
Os beleguins que pretendem representar o Estado perderam a vergonha e transformam os despojos da ordem jurídica numa arma de opressão e de controle das aspirações dos cidadãos. É nesse sentido que talvez, nos dias de hoje, seja lícito tomar a formulação de Carl Schmitt sobre a exceção, o "extremus necessitate casus". "A decisão se separa da norma jurídica e, para se exprimir, a autoridade não tem necessidade do direito para impor o direito."


Luiz Gonzaga Belluzzo, 59, é professor titular de Economia da Unicamp (Universidade de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).

Excepcionalmente, hoje, o artigo da professora Maria da Conceição Tavares não é publicado.


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