São Paulo, domingo, 07 de julho de 2002

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LUÍS NASSIF

O estado-maior da folia

Muitos anos atrás, em uma de minhas primeiras viagens de longa distância, ainda em começo de carreira, fui parar em Belém do Pará, para uma reportagem sobre o asfaltamento da Belém-Brasília ou algo parecido. Lembro até hoje, sofrendo da solidão amazônica de saber os meus no que parecia ser o outro lado do mundo. No quarto vizinho, ouço um chuveiro ligado e o sujeito cantarolando "De manhãzinha / quando chego lá em casa...". Era o "Boiadeiro", de Klecius Caldas e Armando Cavalcanti. Imediatamente senti-me em casa de novo e descobri a imensidão do Brasil.
Essa música me acompanhou a vida toda, cantada por Luiz Gonzaga, principalmente. Mas a dupla sempre foi uma de minhas preferidas.

Novos personagens
A partir dos anos 40, a urbanização do Rio de Janeiro e o aparecimento de uma nova classe média criam a saga de Copacabana e lançam dois novos personagens na música brasileira: o funcionário público e o militar. Na verdade, na história da música brasileira os militares se desdobram em duas frentes. Há uma linha de música instrumental riquíssima, que brota das bandas militares. E um grupo carioca, desse período, filhos da nova classe média, que pratica crítica de costumes.
Pertencem a esse grupo, entre outros, o coronel Luiz Antônio ("Lata d'água na cabeça / lá vai Maria"), o aviador Paulo Soledade e a dupla de autores de "Boiadeiro". Os quatro são da geração intermediária de compositores brasileiros talentosíssimos, mas pouco reconhecidos, que faz a ponte entre os clássicos (Noel, Ary, Pixinguinha, Lamartine, Custódio) e a moderna música brasileira, inaugurada com a bossa nova.
Klecius e Armando foram amigos, vizinhos de casa e companheiros de caserna. Klecius Caldas nasceu em 1919 no bairro de Lins de Vasconcelos, no Rio. Armando, em 1914, em Pernambuco. O primeiro terminou a carreira como coronel, o segundo, como general. Armando morreu em 1964, no Rio de Janeiro. Klecius vive em Copacabana e vai muito bem de saúde.
Dos anos 40 aos 60, dominaram três frentes prestigiadíssimas da música brasileira da época: o samba-canção, a toada nordestina e a marchinha de Carnaval.
Começaram em meados dos anos 40 com o samba-canção, o gênero que se sofisticava, ia beber nas águas do bolero e fornecer grande parte da base harmônica da futura bossa nova.

Clima de "Casablanca"
Em 1948, a estrela em ascensão Dick Farney gravou deles "Somos Dois", enquanto o rei da voz Francisco Alves gravava "Palavras Amigas". Em 1956, Dalva de Oliveira lançaria um dos mais belos sambas-canção da história, o "Nesse Mesmo Lugar" ("Aqui / nesse mesmo lugar"), símbolo máximo da boemia carioca do período, de uma Copacabana que lembrava o clima de "Casablanca".
Por esse período a música nordestina começava a ganhar corpo, através de Luiz Gonzaga, o rei do baião, do "príncipe" Luiz Vieira e, pouco depois, da "princesinha" Claudete Soares. Klecius e Armando assumiram o ritmo, compondo "Sertão do Jequié", gravada por Dalva de Oliveira, e o clássico "Boiadeiro", gravado por Luiz Gonzaga.
Mas os dois foram imbatíveis mesmo é nas marchinhas de Carnaval, interpretadas principalmente por Blecaute, meu vizinho do Espírito Santo do Pinhal, que se tornou conhecido como "o general da banda". A lista de sucessos que desfiam ao longo dos anos 50 só tem paralelo nos clássicos de Lamartine Babo e Braguinha-Alberto Ribeiro nos anos 30.
Em 1950 emplacam "A Marcha do Gago" ("Tá-tá-tá-tá na hora / va-va-vale tudo agora"), cantada por Oscarito, que acabou servindo de padrão para a entrada de artistas da Atlântida e vedetes no ramo das marchinhas carnavalescas. Outro clássico foi "Papai Adão" ("Papai Adão / papai Adão / papai Adão já foi o tal / hoje é Eva / quem manobra / e a culpada foi a cobra"), de 1951, que meu pai ensinou para um amigo que, depois, me ensinou.

Sátira de costumes
Em 1952 veio outro clássico da sátira de costumes, "Maria Candelária" ("Maria Candelária / é alta funcionária / pulou de pára-quedas / caiu na letra ó-ó-ó-ó-ó"), na voz de Blecaute. Em 1953 foi "Máscara da Face", gravada por Dircinha Batista; em 1954, "Piada de Salão", e, em 1956, "Maria Escandalosa", ambas gravadas por Blecaute.
Nos anos 60 eles navegaram nas águas da marcha-rancho, que teve uma ressurreição gloriosa no período com "A Lua é dos Namorados", de 1961, e "Lua Camarada" ("Vem, que a lua é camarada / ao teu lado quero ver amanhecer"), de 1963. E é de 1960 um dos clássicos infantis do período, a balada "Sua Majestade, o Neném".
É fascinante esse Rio dos anos 50. Não apenas forneceu a base da moderna música brasileira como do próprio país moderno em que vivemos. Lamento apenas não morar na cidade, para tentar recontar essa história mágica de feitos e de sons.

E-mail - lnassif@uol.com.br



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