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São Paulo, domingo, 07 de setembro de 2003

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LUÍS NASSIF

Abismo de rosas

Luiz Américo subiu na cadeira e se debruçou sobre o caixão do pai morto. Olhou detidamente, mas não conseguiu reter a imagem na memória. Tinha apenas dois anos e nove meses.
A irmã de quase quatro anos ainda conseguiu se lembrar do pai, do caixão que saiu da rua 13 de Maio, onde moravam, em direção ao cemitério do Araçá. Ele, não.
Nos 75 anos seguintes perseguiu a memória do pai. Ainda na infância demorou um pouco para entender sua relevância, sua história. Tanto que acabou estragando o álbum de recortes que deixou. Mas o violão ele conservou com carinho, o mesmo violão de madeira fina, flexível, construído pelo então jovem Di Giorgio, que trabalhava para o Gianinni, e que uns anos atrás levou até minha casa me deixando comovido.
Luiz Américo acha que o problema que o pai teve na aorta foi devido ao empenho com que tocava o violão, quase o vergando sobre o peito. Mas soube tudo por terceiros.
A mãe Maria Rita de Moraes foi a primeira a ajudá-lo na composição do retrato paterno, juntando peças para montar sua história. Falava com carinho daquele filho de italianos de traços fortes, jeito galante, nascido em 1889 na rua do Carmo, quarto dos cinco filhos de um italiano de Nápoles, o primeiro a nascer no Brasil.
Primeiro, o pai aprendeu o bandolim, depois, o violão. Estreou na música com 16 anos e passou a percorrer o Estado, tocando e fazendo sucesso. E era tão espontâneo e cativante, que não teve dificuldade em conquistá-la a ela, filha de Antonio Vieira de Moraes, o Nhonhô Pereira, político de prestigio, e sobrinha de Julio Prestes.
A escola de violão carioca começou a ser construída no início do século, com base em três nordestinos, Sátiro Bilhar (1860-1927), Quincas Laranjeiras (1883-1935) e o João Pernambuco (1883-1947), além do niteroiense Levino Conceição..
Em São Paulo, o violão ainda engatinhava após temporadas do paraguaio Agustín Barrios que, contam as lendas, morreu envenenado décadas depois por uma moça da Bahia com quem se casou e levou para Guatemala com ele.
Barrios, a espanhola Josefina Robledo, o cubano Gil Orosco, o espanhol Manuel Gomes, todos foram deixando sementes com seus recitais de violão. Autor de um minucioso trabalho sobre o violão paulista, Gilson Uehara Antunes localizou até uma nota anunciando a apresentação em 20 de novembro de 1920 do violonista Jorge Aleman Moreira e seu filho Oscar Marcello Aleman, de nove anos de idade, mais tarde um dos maiores nomes do swing.
Antes de chegar ao violão, o pai aprendeu bandolim. Depois o violão, e de ouvido. Mesmo sem ler música, criou um método que ajudou a formar até Tom Jobim.
Quando estreou em 17 de abril de 1916 no Teatro Colombo, no Braz, levou pouco tempo para ser reconhecido como "o rei do violão". Assim como os nordestinos do Rio, com seus Turunas da Mauricéia, o pai se interessou pela música caipira e chegou a formar um trio de enorme sucesso com Viterbo e Abigail. A carreira foi interrompida por uma bala que atingiu a testa de Viterbo lá em Poços de Caldas. Uns falam que foi bala perdida; outros que foi por causa de mulher.
O título de "rei do violão" foi dado em 1926, não em São Paulo, mas no Rio de Janeiro, em um concurso em que obteve o prêmio principal, que levava o nome de João Pernambuco.
A essa altura, o violão já havia conquistado os salões da cidade, e o pai tinha mais de 200 alunos, a maioria senhoritas de boas famílias, e pelo menos dois meninos prodígios que ajudariam a fazer a história do violão no país: Aníbal Augusto Sardinha, o Canhoto, e Armandinho das Neves.
Até hoje Luiz Américo persegue a memória do pai. Mas o tem encontrado em muitos lugares, praticamente em todos onde existe o violão brasileiro.
Hoje completam 75 anos da morte de Américo Jacomino, o Canhoto. A São Paulo oficial se esqueceu dele. Mas em todas as rodas violonistas do país, "Abismo de Rosas", sua música mais conhecida, composta aos 16 anos de idade, será tocada reverencialmente, aclamada como uma das músicas brasileiras do século.

E-mail - luisnassif@uol.com.br


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