São Paulo, quinta-feira, 07 de novembro de 2002

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OPINIÃO ECONÔMICA

Compaixão

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Hoje, leitor , vou abusar um pouco das citações. Começo com o grande Schopenhauer. Para o meu gosto e temperamento, foi quem melhor expressou o que ele chamava de "mistério da compaixão". Kant quis fundar a moral no imperativo categórico, em um princípio racional e abstrato. Schopenhauer rejeitou esse caminho e ensinou que a vivência da compaixão deveria ser a base da ética. A compaixão entendida como um sentimento, como uma espécie de intuição direta de que somos todos de uma mesma e única essência. O indivíduo é apenas a expressão transitória e ilusória dessa essência que nos une.
A compaixão é algo raro e frágil, mas irrompe às vezes com uma força surpreendente. Central na tradição cristã, a palavra tem sido evitada pelo pensamento social laico, não-religioso, de tendência socialista, social-democrata ou progressista. Preferem falar em solidariedade, coesão social, equidade e outros termos menos, digamos, passionais. É o que acontece, com frequência, mesmo no PT, partido em que sempre foi significativa a influência da Igreja Católica.
Mas, sem compaixão, como sustentar a solidariedade? Fundada exclusivamente em um cálculo racional, será que a solidariedade consegue respirar e sobreviver?
Bem sei que, na vida prática e cotidiana, essas teorias podem valer pouco ou nada. O egoísmo brutal e a luta de todos contra todos são a regra geral.
Mas há exceções. Dei toda essa volta para falar de uma delas: um homem bom, realmente bom, que também é (por incrível que pareça) um político profissional. Refiro-me ao Eduardo Suplicy. Só Deus sabe como ele consegue sobreviver na selva que é a política.
Agora que o PT chegou à Presidência, Suplicy terá mais oportunidades de ajudar a colocar em prática algumas idéias pelas quais vem se batendo há anos e anos. Não há político brasileiro que tenha lutado mais pela distribuição da renda e pela erradicação da miséria.
Outro dia, telefonei para ele: "Eduardo, fiz uma descoberta sensacional! O Nelson Rodrigues (outra vez essa figura fatal!) também era a favor da renda mínima". E li a passagem: "Esse mundo, absolutamente nivelado, não seria justo. Porque o melhor, o mais inteligente, o mais capaz, merece mais. Deve ganhar mais. Agora, deve haver o mínimo compatível com a dignidade humana para todos, rigorosamente para todos".
O Suplicy deu imediatamente os célebres "arrancos triunfais de cachorro atropelado". Vai incorporar o escritor carioca à imensa lista de filósofos, artistas, teólogos, economistas, sociólogos etc. que defenderam ou defendem a renda mínima e idéias aparentadas. Lista que ele costuma desfiar, entusiasmado, em suas pregações.
Como ninguém ignora, o Suplicy é um obsessivo. Tão obsessivo quanto era o Nelson Rodrigues. Talvez mais. Os seus amigos, parentes e correligionários sabem do que estou falando. Vários deles começam a suar frio quando o Suplicy desanda a dissertar sobre distribuição de renda e renda mínima. Alguns tentam sair de fininho.
Mas, sendo amigo do Suplicy há mais de dez anos, posso dar testemunho de que na base da sua pregação obsessiva existe não só conhecimento de causa, estudo e dedicação, mas uma compaixão autêntica, entranhada no seu temperamento mais profundo.
Nós todos sabemos como é difícil ser bom. Pois bem. A bondade do Suplicy é daquelas que humilha os circunstantes. Provoca até ressentimentos.
O governo Lula terá como um dos seus objetivos principais combater a pobreza e melhorar a vergonhosa distribuição da renda neste país. Os obstáculos e resistências serão grandes. Não serão vencidos sem esforços monumentais e a busca obsessiva de resultados.
Os recursos governamentais costumam ser escassos. O legado fiscal e financeiro deixado pelo governo Fernando Henrique Cardoso tornou aguda essa escassez. Lula não pode destinar os poucos recursos de que dispõe a programas sociais mal pensados e pouco eficazes.
Programas tradicionais como a distribuição de leite, cestas básicas ou cupons de alimentação podem representar uma má aplicação desses recursos. Ao enfatizar demais esse tipo de programa, o governo Lula não estaria correndo, por exemplo, o risco de criar ou ampliar burocracias que poderiam ser simplificadas?
A literatura especializada e a experiência brasileira e internacional tendem a indicar que os programas mais eficazes são aqueles que se baseiam nas transferências em dinheiro. Essa modalidade de programa social, seja na forma de renda mínima, imposto de renda negativo, bolsa-escola ou renda de cidadania, dá ao beneficiário o direito de escolher em que produtos gastar a renda recebida. Normalmente, a própria pessoa sabe melhor do que ninguém -e certamente melhor do que um burocrata instalado em algum ministério ou em alguma secretaria- quais são as suas necessidades mais relevantes e urgentes (um detalhamento desse argumento pode ser encontrado no livro mais recente de Eduardo Suplicy: "Renda de Cidadania", Cortez e Perseu Abramo, 2002, páginas 140 a 147).
"Um dia cai a telha, começa a chover em casa. Comprar a telha será uma necessidade tão premente quanto a do alimento. Outro dia começa o frio e se fazem necessários o agasalho e o cobertor para as crianças". São as palavras sábias do Suplicy, ditas com a simplicidade que o caracteriza.
Escutem o Suplicy! Ele sabe do que está falando.


Paulo Nogueira Batista Jr., 47, economista, pesquisador visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP e professor da FGV-Eaesp, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A Economia como Ela É..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002).

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