São Paulo, quinta-feira, 08 de julho de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

O cavalo de Tróia do governo brasileiro

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

O governo Lula completou 18 meses. A comemoração em Brasília foi meio chocha, como seria de esperar. Há pontos positivos a apresentar (a política externa, por exemplo), mas o clima geral é de decepção. É verdade que a economia está se recuperando. Pode até ser que o crescimento do PIB em 2004 fique um pouco acima do esperado. Mas o desemprego continua muito alto, e o salário real, deprimido.
Setores do governo alimentam a esperança de lançar um projeto nacional de desenvolvimento e escapar da longa estagnação do período Fernando Henrique Cardoso. É indispensável fazê-lo, mas o tempo está ficando curto. Na prática, o governo Lula tem mais 18 meses pela frente, uma vez que 2006 será ano de eleições presidenciais.
O pior não é nem isso. O pior é que... Hesito. Devo dar uma de Cassandra, outra vez? Não sei se vale a pena.
Em todo o caso, vamos lá: o pior é que a política econômica é um cavalo de Tróia para o governo brasileiro. Em outras palavras: é o presente de grego que os tucanos deixaram para os petistas ao partir.
Na realidade, assim como os gregos, os tucanos não se foram. Continuam solidamente instalados em quase todos os postos-chave da Fazenda e do Banco Central. Com as principais alavancas da área econômica na mão, tratam de ir sufocando qualquer projeto de desenvolvimento nacional.
Quem são essas pessoas? Em geral, profissionais originários do sistema financeiro ou de instituições internacionais, freqüentemente formados ("adestrados" talvez seja a palavra mais certa) em universidades norte-americanas. A grande maioria deles tem uma afinidade natural com a agenda econômico-financeira do período Collor-FHC. Querem completá-la e, se possível, aprofundá-la. Na pior das hipóteses, defenderão as posições até a reinstalação completa do tucanato, programada para 2007.
A sua mais recente contribuição está expressa nas decisões do Conselho Monetário Nacional da semana passada. Recusaram a proposta de flexibilizar um pouco as metas de inflação. Mantiveram a meta de 2005 em 4,5%. Fixaram a de 2006 no mesmo percentual, mas reduziram a margem de tolerância para dois pontos percentuais (algo que ninguém estava pedindo, diga-se de passagem). Mantiveram a taxa de juro de longo prazo (TJLP) em 9,75%, abstendo-se de dar um estímulo aos investimentos.
Outra decisão, menos comentada, foi a de permitir a liquidação antecipada de dívidas externas (resolução 3.217 do Banco Central). Pelas normas até então vigentes, o pagamento no exterior só poderia ser feito nas datas previstas nos contratos, conforme registro no Banco Central. Agora, empréstimos, títulos, financiamentos de importações e outras operações poderão ser pagos antes das datas de vencimento. Com isso, perde-se controle sobre o perfil da dívida externa brasileira.
O curioso foi a justificativa oferecida por um dos diretores do Banco Central. O problema, segundo ele, é que as normas anteriores vinham sendo "burladas" por empresas devedoras sediadas no país, que se valiam de contas CC5 (contas de não residentes) para remeter moeda estrangeira ao exterior e antecipar pagamentos. "Uma alternativa legítima", disse ele, mas que distorcia as estatísticas oficiais, pois lamentavelmente o Banco Central não era informado a respeito dessas operações (Folha, 1º de julho de 2004, pág. B4).
Dá para entender? Empresas residentes no Brasil valiam-se de contas de não-residentes para burlar as normas e antecipar pagamentos. "Legítimo", segundo o diretor do Banco Central. Mas, para não distorcer as estatísticas, vamos simplesmente mudar as normas e liberar o pagamento antecipado...
Essa decisão faz parte de uma revisão geral das normas cambiais, um projeto "longo, ambicioso e abrangente", afirmou o presidente do Banco Central. Ao que parece, um dos objetivos dessa revisão é remover entraves ao fluxo de capitais.
É exatamente o contrário do que se deveria fazer. Daqui a algum tempo, poderemos estar descobrindo que a economia brasileira tornou-se mais vulnerável do ponto de vista externo e mais suscetível a choques financeiros. É o que tenho tentado explicar, sem sucesso, anos a fio. Mas não posso reclamar. Cassandras podem ter o dom da profecia, mas nunca o da persuasão.
Na cerimônia que marcou os 18 meses do governo Lula, o presidente da República fez a seguinte reflexão: "A arte de governar é a arte de ter paciência".
Não há dúvida. O problema, evidentemente, é que a paciência dos governados está começando a se esgotar.


Paulo Nogueira Batista Jr., 49, economista e professor da FGV-EAESP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A Economia como Ela É..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002).
E-mail - pnbjr@attglobal.net


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