São Paulo, sábado, 08 de julho de 2006

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GESNER OLIVEIRA

Populismo das cotas

Há razões para a ação afirmativa, mas a forma do governo para enfrentar o problema agride o bom senso

A CRIAÇÃO de cotas para negros e índios nas universidades, a reserva de vagas para minorias no funcionalismo público e o incentivo a que empresas privadas reproduzam tal sistema constituem grave equívoco. Tais proposições estão no projeto de Lei de Cotas (PL 73/1999) e no de Estatuto da Igualdade Racial (PL 1.198/00), que se encontram em fase final de tramitação no Congresso. Se implementados, representarão mais um obstáculo à superação da desigualdade no país, prejudicando as camadas desfavorecidas que em tese deveriam ser beneficiadas por tais medidas.
O objetivo de combater a discriminação é louvável. O Brasil nunca foi e não é uma democracia racial. As estatísticas disponíveis indicam abismo social em desfavor de negros. Há razões para a chamada ação afirmativa por parte do Estado e da sociedade. Mas a forma patrocinada pelo governo para enfrentar o problema agride o bom senso.
A discriminação racial não é menor no Brasil do que em outros países, como os EUA. Quem já a sentiu na pele sabe que o preconceito aqui não tem nada de cordial. É só diferente. Essa lição foi transmitida há mais de meio século pelo saudoso sociólogo Oracy Nogueira. No Brasil, prevaleceria "preconceito de cor (ou de marca)", caracterizado pela discriminação em razão de traços físicos do indivíduo. Nos EUA, ocorreria o "preconceito de origem", marcado pela exclusão em razão de pertinência a determinada etnia.
Nesse último caso, haveria uma auto-identificação natural do grupo discriminado. Em contraste, a química social brasileira permitiria a troca de cor ao longo do tempo mediante a miscigenação. Ao pesquisar famílias de descendentes de ilustres negros do século 19, chamou a atenção do professor Oracy o fato de encontrar uma grande maioria de brancos. O "branqueamento" passaria a ser uma das estratégias de ascensão e sobrevivência. Nesse contexto, não é trivial quitar "nossa dívida histórica com os negros", como quer o manifesto a favor da proposta de cotas divulgado nesta semana. Ou, no mínimo, torna ambígua a definição de grupos raciais para efeito de criação de direitos, como têm alertado estudiosos como Simon Schwartzman e Eunice Durham.
Outro pecado capital no sistema de cotas é a dissociação entre mérito acadêmico e a obtenção de uma vaga. Segundo as regras defendidas pelo governo, o aluno ganha mais pontos por ser negro, e não por ter rendimento escolar de excelência. Trata-se de discriminação que, pela sua própria natureza, é ineficiente. Trata-se de discriminação reversa que é tão injusta quanto a original e geradora de grupos de interesse que passam a fazer lobby pela perpetuação de seus privilégios.
Um sistema de cotas dissociado do mérito acadêmico reduz ainda mais a qualidade e a reputação das universidades públicas. Isso enfraquece mecanismo de mobilidade social. Um diploma de uma boa universidade não acrescenta muito para quem tem dinheiro e relacionamento social. Mas pode ser a única via de ascensão possível para o pobre. A avacalhação do sistema de acesso ao ensino superior é, portanto, regressiva; prejudica mais aqueles que dependem da escola pública para melhorar seu padrão de vida.
Há alternativas para atingir os objetivos do sistema de cotas sem incorrer em seus defeitos. Artigo do teórico de direito e economia Robert Cooter da Universidade da Califórnia mostra, por exemplo, como incentivos flexíveis são superiores a fórmulas centralizadoras e burocráticas como o sistema de cotas. A prioridade ao ensino público básico de boa qualidade constitui instrumento poderoso no médio prazo.
Mas há boas propostas de curto prazo, como os cursinhos preparatórios gratuitos para comunidades carentes. Ou ainda o reforço das bolsas de estudo, emprego temporário na própria universidade e crédito educativo. Recursos adicionais para tais programas podem ser obtidos mediante contribuições de alunos, dimensionadas de acordo com a capacidade de pagamento das famílias. Uma agenda dessa natureza terminaria com a mamata de ensino superior gratuito para uma minoria de privilegiados. À qual se pretende agregar sistema populista de cotas.


GESNER OLIVEIRA, 50, é doutor em economia pela Universidade da Califórnia (Berkeley), professor da FGV-EAESP, presidente do Instituto Tendências de Direito e Economia e ex-presidente do Cade.
Internet: www.gesneroliveira.com.br
gesner@fgvsp.br


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