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GESNER OLIVEIRA
Populismo das cotas
Há razões para a ação
afirmativa, mas a forma do
governo para enfrentar o
problema agride o bom senso
A CRIAÇÃO de cotas para negros
e índios nas universidades, a
reserva de vagas para minorias no funcionalismo público e o incentivo a que empresas privadas reproduzam tal sistema constituem
grave equívoco. Tais proposições estão no projeto de Lei de Cotas (PL
73/1999) e no de Estatuto da Igualdade Racial (PL 1.198/00), que se encontram em fase final de tramitação
no Congresso. Se implementados,
representarão mais um obstáculo à
superação da desigualdade no país,
prejudicando as camadas desfavorecidas que em tese deveriam ser beneficiadas por tais medidas.
O objetivo de combater a discriminação é louvável. O Brasil nunca
foi e não é uma democracia racial. As
estatísticas disponíveis indicam
abismo social em desfavor de negros. Há razões para a chamada ação
afirmativa por parte do Estado e da
sociedade. Mas a forma patrocinada
pelo governo para enfrentar o problema agride o bom senso.
A discriminação racial não é menor no Brasil do que em outros países, como os EUA. Quem já a sentiu
na pele sabe que o preconceito aqui
não tem nada de cordial. É só diferente. Essa lição foi transmitida há
mais de meio século pelo saudoso
sociólogo Oracy Nogueira. No Brasil, prevaleceria "preconceito de cor
(ou de marca)", caracterizado pela
discriminação em razão de traços físicos do indivíduo. Nos EUA, ocorreria o "preconceito de origem",
marcado pela exclusão em razão de
pertinência a determinada etnia.
Nesse último caso, haveria uma auto-identificação natural do grupo
discriminado.
Em contraste, a química social
brasileira permitiria a troca de cor
ao longo do tempo mediante a miscigenação. Ao pesquisar famílias de
descendentes de ilustres negros do
século 19, chamou a atenção do professor Oracy o fato de encontrar
uma grande maioria de brancos. O
"branqueamento" passaria a ser
uma das estratégias de ascensão e
sobrevivência. Nesse contexto, não
é trivial quitar "nossa dívida histórica com os negros", como quer o manifesto a favor da proposta de cotas
divulgado nesta semana. Ou, no mínimo, torna ambígua a definição de
grupos raciais para efeito de criação
de direitos, como têm alertado estudiosos como Simon Schwartzman e
Eunice Durham.
Outro pecado capital no sistema
de cotas é a dissociação entre mérito
acadêmico e a obtenção de uma vaga. Segundo as regras defendidas pelo governo, o aluno ganha mais pontos por ser negro, e não por ter rendimento escolar de excelência. Trata-se de discriminação que, pela sua
própria natureza, é ineficiente. Trata-se de discriminação reversa que é
tão injusta quanto a original e geradora de grupos de interesse que passam a fazer lobby pela perpetuação
de seus privilégios.
Um sistema de cotas dissociado
do mérito acadêmico reduz ainda
mais a qualidade e a reputação das
universidades públicas. Isso enfraquece mecanismo de mobilidade social. Um diploma de uma boa universidade não acrescenta muito para quem tem dinheiro e relacionamento social. Mas pode ser a única
via de ascensão possível para o pobre. A avacalhação do sistema de
acesso ao ensino superior é, portanto, regressiva; prejudica mais aqueles que dependem da escola pública
para melhorar seu padrão de vida.
Há alternativas para atingir os objetivos do sistema de cotas sem incorrer em seus defeitos. Artigo do
teórico de direito e economia Robert Cooter da Universidade da Califórnia mostra, por exemplo, como
incentivos flexíveis são superiores a
fórmulas centralizadoras e burocráticas como o sistema de cotas.
A prioridade ao ensino público básico de boa qualidade constitui instrumento poderoso no médio prazo.
Mas há boas propostas de curto prazo, como os cursinhos preparatórios
gratuitos para comunidades carentes. Ou ainda o reforço das bolsas de
estudo, emprego temporário na própria universidade e crédito educativo. Recursos adicionais para tais
programas podem ser obtidos mediante contribuições de alunos, dimensionadas de acordo com a capacidade de pagamento das famílias.
Uma agenda dessa natureza terminaria com a mamata de ensino
superior gratuito para uma minoria
de privilegiados. À qual se pretende
agregar sistema populista de cotas.
GESNER OLIVEIRA, 50, é doutor em economia pela Universidade da Califórnia (Berkeley), professor da FGV-EAESP,
presidente do Instituto Tendências de Direito e Economia e
ex-presidente do Cade.
Internet: www.gesneroliveira.com.br
gesner@fgvsp.br
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