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OPINIÃO ECONÔMICA
Continente à deriva
RUBENS RICUPERO
Pela primeira vez, ao que
eu saiba, a América Latina
arrebatou à África o troféu do pior
desempenho econômico entre todas as regiões supostamente em
desenvolvimento. Com taxas de
0,4% em 2001 e -1,1% em 2002, os
latino-americanos ficaram longe
dos 2,7% e 2,5% dos africanos.
Não que haja muito a celebrar
nesses últimos resultados, que mal
superam a taxa demográfica.
Nem se pretende extrair do fato
conclusões absurdas. Como, por
exemplo, a de que, em termos absolutos ou relativos, a África teria
deixado de ser, em quase todos os
domínios, o continente por excelência da desventura: guerras externas ou civis, genocídio, fome,
Aids, concentração da maioria esmagadora das economias menos
desenvolvidas (33 em 49).
Tampouco se deve esquecer que,
para o desastroso desempenho de
2002, concorreram alguns fatores
excepcionais, dificilmente repetíveis em circunstâncias regulares.
Entre eles, o colapso da economia
argentina e, em grau menor, o da
venezuelana. Feitas essas ressalvas, não há como escamotear a
extrema gravidade do sinal. Em
primeiro lugar, porque o contraste
é penoso com o período de 1946 a
1975, quando a América Latina
crescia entre 6% e 7% ao ano, na
liderança indisputada das regiões
em desenvolvimento. Passamos
depois a modesto lugar intermediário entre os asiáticos e os africanos, sempre, porém, mais próximos da comissão de frente. Dessa
posição, começamos agora a escorregar para baixo. Não tanto
devido aos duvidosos progressos
africanos, mas porque o espetacular avanço chinês e asiático ameaça engolir e confundir dentro da
mesma nuvem de poeira todo o
pelotão dos que ficaram para trás.
Na abertura da reunião da Comissão de Comércio da Unctad,
dias atrás, foi um tanto cabisbaixos que os latinos tiveram de escutar o discurso triunfalista com o
qual o embaixador da Índia justificava o deslocamento em direção
à Ásia do fulcro das atividades
econômicas. Em 1940, dizia ele, o
continente asiático representava
60% da população e só 19% do
Produto Interno Bruto mundiais;
em 1995, essas porcentagens eram
de 57% e 37%, respectivamente, e
em 2025 estima-se que serão de
55% e 51%.
A segunda razão para julgar inquietante a rabeira dos anos passados é que, em vez de incidente
isolado e atípico, elas indicam tendência à estagnação e ao declínio
que dura já, com breve interrupção, quase dois decênios, uma geração. De fato, após perder a década de 1980, parecia, em princípio,
que os anos 1990 nos tinham devolvido o crescimento, embora
não mais com a aceleração de antes. A partir de 1997-98, no entanto, o vento voltou a nos ser contrário. Desde então, tivemos cinco
anos de taxa negativa de menos
0,3% em termos per capita. É isso
que levou meu colega, José Antonio Ocampo, secretário-executivo
da Cepal, a afirmar que, após a
"década perdida" dos 80, acabamos de ter meia década igualmente perdida. Quando se lembra que
a mesma Cepal calculava em 6%,
no mínimo, a taxa média de expansão indispensável para recuperar o atraso social e tecnológico
do continente, pode-se medir a
distância que afasta o sonho da
realidade.
A confirmar que se trata bem de
uma tendência geral, não de mero
episódio extraordinário, há outro
indício significativo. De uns anos
para cá, não existem mais exceções, novos casos de crescimento
rápido, como pareceram ser, em
certos momentos, o Chile, a República Dominicana, o México, a
Costa Rica. Os melhores desempenhos mal conseguem superar a
módica taxa de 4%.
Como explicar o fenômeno? Em
2001-2002, algumas das causas foram conjunturais, ligadas à recessão americana e mundial, assim
como à consequente queda nos
preços das principais exportações
latino-americanas. O que estaria,
contudo, por trás do declínio do
crescimento per capita que se registra a partir de 1997-98?
Ocampo, que foi ministro das
Finanças da Colômbia e é um dos
mais sólidos economistas latino-americanos, com especial competência em temas financeiros, não
hesita no diagnóstico. A causa comum dessa tendência generalizada é a economia internacional, sobretudo o comportamento dos
mercados de capital. Em consequência da crise asiática de 1997,
os fluxos financeiros internacionais sofreram forte contração e,
após 1998, o pagamento de juros
começou a ser maior do que a entrada de novos capitais. As transferências de recursos se tornaram
novamente negativas, em termos
líquidos. A região voltou a ser exportadora de capitais, com uma
saída de US$ 39 bilhões, no ano
passado, nível que não se via desde os anos 80. Por algum tempo, o
processo foi compensado pela entrada de investimentos diretos
(para as privatizações, por exemplo), mas esse não é mais o caso.
Em 2002, os investimentos diretos
chegaram apenas à metade dos
ingressados em 1999.
A turbulência e a volatilidade
dos mercados de capital tiveram,
assim, efeitos devastadores para
os latino-americanos, vítimas de
crises sucessivas e encadeadas:
Ásia, Rússia, Brasil, Argentina. O
ajustamento ao encolhimento de
recursos tem sido invariavelmente
tentado pela via da desvalorização e da recessão interna, com todas as suas sequelas: desemprego,
acirramento dos conflitos, aumento da desigualdade. O pior é que,
mesmo quando tem êxito, o ajustamento permite apenas recomeçar o ciclo infernal: aumento do
endividamento, instabilidade, novas crises. Os mercados financeiros são imperfeitos e tendem, inelutavelmente, a subestimar ou a
exagerar os riscos. Sem uma reforma profunda, que os países ricos
recusam, o retorno a esses mercados é só o intervalo que precede a
crise seguinte.
Enquanto não se tirar a lição
dessa verdade, o continente continuará duplamente à deriva. Primeiro porque seu crescimento seguirá errático, ao sabor dos humores dos mercados em situação de
véspera de guerra e de incerteza
política extrema. Segundo porque
os dirigentes não logram vislumbrar alternativa e, resignando-se a
flutuar aos ventos e tempestades,
abandonaram há muito tempo
até a veleidade de comandar seu
próprio destino.
Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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