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São Paulo, domingo, 09 de fevereiro de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Continente à deriva

RUBENS RICUPERO

Pela primeira vez, ao que eu saiba, a América Latina arrebatou à África o troféu do pior desempenho econômico entre todas as regiões supostamente em desenvolvimento. Com taxas de 0,4% em 2001 e -1,1% em 2002, os latino-americanos ficaram longe dos 2,7% e 2,5% dos africanos. Não que haja muito a celebrar nesses últimos resultados, que mal superam a taxa demográfica. Nem se pretende extrair do fato conclusões absurdas. Como, por exemplo, a de que, em termos absolutos ou relativos, a África teria deixado de ser, em quase todos os domínios, o continente por excelência da desventura: guerras externas ou civis, genocídio, fome, Aids, concentração da maioria esmagadora das economias menos desenvolvidas (33 em 49).
Tampouco se deve esquecer que, para o desastroso desempenho de 2002, concorreram alguns fatores excepcionais, dificilmente repetíveis em circunstâncias regulares. Entre eles, o colapso da economia argentina e, em grau menor, o da venezuelana. Feitas essas ressalvas, não há como escamotear a extrema gravidade do sinal. Em primeiro lugar, porque o contraste é penoso com o período de 1946 a 1975, quando a América Latina crescia entre 6% e 7% ao ano, na liderança indisputada das regiões em desenvolvimento. Passamos depois a modesto lugar intermediário entre os asiáticos e os africanos, sempre, porém, mais próximos da comissão de frente. Dessa posição, começamos agora a escorregar para baixo. Não tanto devido aos duvidosos progressos africanos, mas porque o espetacular avanço chinês e asiático ameaça engolir e confundir dentro da mesma nuvem de poeira todo o pelotão dos que ficaram para trás.
Na abertura da reunião da Comissão de Comércio da Unctad, dias atrás, foi um tanto cabisbaixos que os latinos tiveram de escutar o discurso triunfalista com o qual o embaixador da Índia justificava o deslocamento em direção à Ásia do fulcro das atividades econômicas. Em 1940, dizia ele, o continente asiático representava 60% da população e só 19% do Produto Interno Bruto mundiais; em 1995, essas porcentagens eram de 57% e 37%, respectivamente, e em 2025 estima-se que serão de 55% e 51%.
A segunda razão para julgar inquietante a rabeira dos anos passados é que, em vez de incidente isolado e atípico, elas indicam tendência à estagnação e ao declínio que dura já, com breve interrupção, quase dois decênios, uma geração. De fato, após perder a década de 1980, parecia, em princípio, que os anos 1990 nos tinham devolvido o crescimento, embora não mais com a aceleração de antes. A partir de 1997-98, no entanto, o vento voltou a nos ser contrário. Desde então, tivemos cinco anos de taxa negativa de menos 0,3% em termos per capita. É isso que levou meu colega, José Antonio Ocampo, secretário-executivo da Cepal, a afirmar que, após a "década perdida" dos 80, acabamos de ter meia década igualmente perdida. Quando se lembra que a mesma Cepal calculava em 6%, no mínimo, a taxa média de expansão indispensável para recuperar o atraso social e tecnológico do continente, pode-se medir a distância que afasta o sonho da realidade.
A confirmar que se trata bem de uma tendência geral, não de mero episódio extraordinário, há outro indício significativo. De uns anos para cá, não existem mais exceções, novos casos de crescimento rápido, como pareceram ser, em certos momentos, o Chile, a República Dominicana, o México, a Costa Rica. Os melhores desempenhos mal conseguem superar a módica taxa de 4%.
Como explicar o fenômeno? Em 2001-2002, algumas das causas foram conjunturais, ligadas à recessão americana e mundial, assim como à consequente queda nos preços das principais exportações latino-americanas. O que estaria, contudo, por trás do declínio do crescimento per capita que se registra a partir de 1997-98?
Ocampo, que foi ministro das Finanças da Colômbia e é um dos mais sólidos economistas latino-americanos, com especial competência em temas financeiros, não hesita no diagnóstico. A causa comum dessa tendência generalizada é a economia internacional, sobretudo o comportamento dos mercados de capital. Em consequência da crise asiática de 1997, os fluxos financeiros internacionais sofreram forte contração e, após 1998, o pagamento de juros começou a ser maior do que a entrada de novos capitais. As transferências de recursos se tornaram novamente negativas, em termos líquidos. A região voltou a ser exportadora de capitais, com uma saída de US$ 39 bilhões, no ano passado, nível que não se via desde os anos 80. Por algum tempo, o processo foi compensado pela entrada de investimentos diretos (para as privatizações, por exemplo), mas esse não é mais o caso. Em 2002, os investimentos diretos chegaram apenas à metade dos ingressados em 1999.
A turbulência e a volatilidade dos mercados de capital tiveram, assim, efeitos devastadores para os latino-americanos, vítimas de crises sucessivas e encadeadas: Ásia, Rússia, Brasil, Argentina. O ajustamento ao encolhimento de recursos tem sido invariavelmente tentado pela via da desvalorização e da recessão interna, com todas as suas sequelas: desemprego, acirramento dos conflitos, aumento da desigualdade. O pior é que, mesmo quando tem êxito, o ajustamento permite apenas recomeçar o ciclo infernal: aumento do endividamento, instabilidade, novas crises. Os mercados financeiros são imperfeitos e tendem, inelutavelmente, a subestimar ou a exagerar os riscos. Sem uma reforma profunda, que os países ricos recusam, o retorno a esses mercados é só o intervalo que precede a crise seguinte.
Enquanto não se tirar a lição dessa verdade, o continente continuará duplamente à deriva. Primeiro porque seu crescimento seguirá errático, ao sabor dos humores dos mercados em situação de véspera de guerra e de incerteza política extrema. Segundo porque os dirigentes não logram vislumbrar alternativa e, resignando-se a flutuar aos ventos e tempestades, abandonaram há muito tempo até a veleidade de comandar seu próprio destino.


Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).


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