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São Paulo, domingo, 09 de fevereiro de 2003

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TENDÊNCIAS INTERNACIONAIS

Gastos sociais criam modelo econômico alternativo

GILSON SCHWARTZ
ARTICULISTA DA FOLHA

Pouco mais de um mês depois da posse, o governo Lula ainda é uma incógnita na política econômica. A "transição", até agora, é uma promessa. Pior: ninguém parece saber como ou quando vai começar a mudar, se é que vai mudar.
Um dos documentos mais didáticos e objetivos sobre o que poderia ser uma política econômica alternativa foi produzido não pelo PT, mas por Pierre Salama, economista francês.
Há anos um observador da conjuntura financeira e da pobreza latino-americana, Salama defende a substituição da variável de ajuste a conduzir o Brasil de volta ao crescimento. Em vez da taxa de juros, o gasto social.
Analisando os dados e recuperando os principais estudos sobre a pobreza na América Latina e no Brasil, Salama constatou que a regra é aumentar os gastos sociais nos momentos de crescimento e reduzi-los na crise.
O fato marcante na história recente da pobreza latino-americana é a dificuldade para reduzir a pobreza. Os pobres são mais vulneráveis às crises.
Para alterar esse quadro, Salama defende o forte aumento do gasto social no momento de crise. Ao contrário da redução de gastos com elevação de juros pedida pelos mercados e monitorada pelo FMI, o aumento do gasto social abriria as portas a novo "regime de crescimento".
No modelo atual, a pobreza aumenta mais que proporcionalmente à queda do PIB. Nos momentos de retomada, os níveis de pobreza ficam estáveis por um período mais longo.
Como fazer então a transição para outro regime de crescimento? Além do aumento de gastos sociais na crise, seria necessário evitar a volatilidade do PIB. Isso não depende da boa vontade dos governos, pois a origem maior da instabilidade é a volatilidade dos fluxos internacionais de capitais. Para o economista Dani Rodrik, a volatilidade dos capitais explica 50% da volatilidade do PIB nos anos 90, contra 20% nos anos 80.
Nas economias latino-americanas, essa fragilidade maior resultou de processos rápidos de liberalização, em contraponto a movimentos negociados.
Inverter essa liberalização torna-se crucial, com políticas industriais amparadas pelo crescimento do mercado doméstico resultante do gasto social que altera a distribuição de renda. Em resumo: a receita de Salama é ampliar muito o gasto social nos momentos de crise e alterar a inserção internacional do país.
Algumas iniciativas do governo Lula parecem refletir esse desenho. Mas tanto no gasto social quanto nas políticas industriais há riscos de que a receita descambe para o assistencialismo.
É preciso efetivamente aumentar o gasto social, e não apenas reorientar programas e recursos já existentes. É crucial que o Estado regule fortemente a atividade econômica e direcione a substituição de importações, e não só use seus instrumentos de intervenção mais fortes (como o BNDES) para socorrer empresas em dificuldades.
Se o assistencialismo é risco, esse não é o único projeto de longo prazo tentando se afirmar no governo Lula.
Muitos batalham pelo ideal de tirar o país da crise com megaesforço exportador, menos intervencionista, sem compromissos com o aumento expressivo dos gastos sociais. Mas é a velha ortodoxia criticada por Salama que predomina no curto prazo.
São então quatro modelos em conflito: social-intervencionista (Estado forte), assistencialista (Estado hospital), ajuste exportador (desregulamentação) e ortodoxia (ajuste financeiro). A transição brasileira só terá sentido quando se puder avaliar qual dessas receitas vencerá.


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