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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Minha pátria é minha língua
ALOIZIO MERCADANTE
Um dos mais propalados
"méritos" do governo de Fernando Henrique Cardoso foi a
chamada "diplomacia presidencial". Diziam os arautos do pensamento único, hoje surpreendentemente neocríticos, que Fernando
Henrique Cardoso, intelectual de
certo renome e poliglota, podia como ninguém representar o Brasil
no exterior e projetar a imagem de
um país capaz de inserir-se no
processo de globalização e de "modernização" neoliberal. Argumentavam ainda alguns que o fato de
FHC pertencer a uma elite supostamente cosmopolita e avançada
lhe permitia dialogar, em condições de igualdade, com os principais líderes mundiais. Ao mesmo
tempo, a clara inserção do antigo
presidente brasileiro na nossa
"Bélgica", para usar uma metáfora em voga nos anos 70, era precisamente a garantia de que ele reunia as condições para promover as
mudanças que permitiriam, em
tese, melhorar a qualidade de vida
dos habitantes da nossa "Índia".
Assim, Fernando Henrique Cardoso acumulou vasta milhagem e
emprestou o seu brilho diáfano a
não poucos eventos internacionais. Contudo esse notável esforço
não produziu resultados significativos, no que se refere à promoção
do desenvolvimento nacional e à
inserção do país no cenário internacional.
Em relação ao comércio externo,
por exemplo, houve inversão da
tendência histórica anterior. Até o
Plano Real, o Brasil vinha conseguindo manter, de forma consistente, saldos comerciais positivos.
Entretanto, no início do governo
FHC, o comércio exterior perdeu a
importante função de gerar saldos
positivos e ganhou o inusitado papel de contribuir para o controle
da inflação. Essa nova função macroeconômica do comércio exterior, somada à sobrevalorização
cambial causada pelo referido
plano econômico, fez com que o
Brasil passasse a apresentar sistematicamente saldos negativos em
sua balança comercial e uma crescente vulnerabilidade externa.
Entre 1990 e 1994, o superávit alcançou US$ 60,4 bilhões, ao passo
que, entre 1995 e 2000, o déficit somou US$ 24,3 bilhões. Além disso,
não houve nenhum avanço na
composição das nossas exportações, as quais continuaram a
apresentar, no início deste século,
praticamente os mesmos percentuais de produtos industrializados
e primários que apresentavam na
década de 80 (cerca de 70% de
produtos industrializados e 30%
de produtos primários). Só houve
algum avanço em anos recentes,
graças, exclusivamente, às exportações da Embraer.
No que tange ao Mercosul, projeto geopolítico de grande significado para o país, o governo FHC
foi incapaz de impedir o seu quase
naufrágio. Em sua origem, o Mercosul tinha um nítido sentido estratégico de cunho neo-estrutural.
Tratava-se de criar um espaço
econômico, social e político capaz
de levar os países que compunham a integração regional a
uma inserção mais firme e soberana na globalização. Porém o Mercosul, ao longo dos governos de
Fernando Henrique Cardoso, perdeu essa dimensão estratégica inicial e concentrou-se exclusivamente na liberalização comercial,
em detrimento da coordenação
das políticas macroeconômicas,
da conformação de políticas harmônicas de desenvolvimento econômico e tecnológico, da criação
de fundos de desenvolvimento e
da livre circulação de trabalhadores.
FHC, com sua política externa
errática e errante, dada à ausência de um projeto nacional definido para além da mera abertura
econômica e da "modernização"
conservadora, foi incapaz de inverter tal processo e de recolocar o
Mercosul em sua correta dimensão estratégica inicial.
Essa mesma política externa inconsistente resultou na incapacidade de apresentar alternativas à
em seu atual formato. Embora o
governo brasileiro anterior tenha
feito reservas à Área de Livre Comércio das Américas, o fato concreto é que Fernando Henrique
Cardoso foi incapaz de formular
um projeto próprio de integração
comercial, com prazos mais amplos e escopos mais reduzidos e
que promovesse a necessária proteção dos setores estratégicos nacionais e mantivesse a integridade
geopolítica do Mercosul.
Ademais, o governo anterior,
com toda a sua pomposa diplomacia presidencial, não soube defender, com o rigor imprescindível, os interesses de nossos exportadores nem se empenhou como
deveria em construir as desejadas
parcerias estratégicas com países
emergentes, como China, Índia,
África do Sul etc., concentrando-se
fortemente nas relações assimétricas com os países desenvolvidos.
Apesar de toda a precariedade
da política externa de FHC, os hoje neocríticos e outrora seguidores
do doutor Pangloss continuaram
a defendê-la. Mais do que isso: durante a campanha presidencial, o
candidato oficial foi apresentado
como o único capaz de mantê-la.
Insinuavam, dessa forma, que Lula, por ser monoglota e por não
pertencer, como FHC e Serra, à elite social e intelectual do país, não
reunia as condições necessárias
para poder bem representar o
Brasil no exterior.
Pois bem, com apenas um mês
de governo, o presidente Lula já é
considerado unanimente um dos
principais e mais respeitados líderes mundiais. No Sul em desenvolvimento, a sua envergadura política só encontra paralelo com a de
Nelson Mandela. Fatos o demonstram. Lula foi o único presidente
brasileiro eleito a ser recebido na
Casa Branca, num encontro que
resultou no estabelecimento de
uma agenda ampla de negociação
Brasil/EUA. Na América do Sul, o
novo governo não hesitou em usar
audaciosamente a influência brasileira na região para criar o Grupo de Amigos da Venezuela, instância de negociação que vem obtendo êxito em seu objetivo de solucionar a crise daquele país por
via pacífica e constitucional.
Mas talvez o símbolo mais visível (certamente não o mais importante) da relevância política que o
presidente Lula tem hoje no cenário mundial seja o convite que recebeu para participar do Fórum
Econômico Mundial, em Davos.
Na realidade, não foi o presidente
Lula que foi a Davos, e sim Davos
que foi até o presidente Lula. Os
neoliberais de lá, bem mais inteligentes que os daqui, já estão conscientes de que a "modernização"
efetuada conforme as diretrizes do
Consenso de Washington gerou
uma ordem mundial crescentemente desigual e mergulhou a
maior parte dos países em desenvolvimento numa crise social e
econômica sem paralelo. Eles sabem o perigo que isso representa.
A "montanha mágica" precisava,
portanto, de um Leon Naptha que
criticasse a nova ordem e apontasse alternativas para uma "globalização solidária". O presidente Lula o fez com propriedade. E o fez
não porque tivesse maior conhecimento de temas internacionais
que FHC, mas sim porque, diferentemente dele, está respaldado
num projeto de nação que dá consistência e legitimidade às suas
ações no campo internacional.
Significativamente, o presidente
Lula, em Davos, falou antes do
que pretende fazer no Brasil para
depois apresentar as suas idéias
referentes ao cenário mundial.
Lula, monoglota e oriundo da
nossa "Índia", vem conseguindo
conduzir uma autêntica diplomacia presidencial séria, congruente
e de sucesso. Tudo isso em bom
português. Como canta Caetano
Veloso, "minha pátria é minha
língua".
Aloizio Mercadante, 48, é economista e
professor licenciado da PUC e da Unicamp, senador por São Paulo e secretário de Relações Internacionais do Partido
dos Trabalhadores.
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