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São Paulo, domingo, 09 de fevereiro de 2003

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Minha pátria é minha língua

ALOIZIO MERCADANTE

Um dos mais propalados "méritos" do governo de Fernando Henrique Cardoso foi a chamada "diplomacia presidencial". Diziam os arautos do pensamento único, hoje surpreendentemente neocríticos, que Fernando Henrique Cardoso, intelectual de certo renome e poliglota, podia como ninguém representar o Brasil no exterior e projetar a imagem de um país capaz de inserir-se no processo de globalização e de "modernização" neoliberal. Argumentavam ainda alguns que o fato de FHC pertencer a uma elite supostamente cosmopolita e avançada lhe permitia dialogar, em condições de igualdade, com os principais líderes mundiais. Ao mesmo tempo, a clara inserção do antigo presidente brasileiro na nossa "Bélgica", para usar uma metáfora em voga nos anos 70, era precisamente a garantia de que ele reunia as condições para promover as mudanças que permitiriam, em tese, melhorar a qualidade de vida dos habitantes da nossa "Índia".
Assim, Fernando Henrique Cardoso acumulou vasta milhagem e emprestou o seu brilho diáfano a não poucos eventos internacionais. Contudo esse notável esforço não produziu resultados significativos, no que se refere à promoção do desenvolvimento nacional e à inserção do país no cenário internacional.
Em relação ao comércio externo, por exemplo, houve inversão da tendência histórica anterior. Até o Plano Real, o Brasil vinha conseguindo manter, de forma consistente, saldos comerciais positivos. Entretanto, no início do governo FHC, o comércio exterior perdeu a importante função de gerar saldos positivos e ganhou o inusitado papel de contribuir para o controle da inflação. Essa nova função macroeconômica do comércio exterior, somada à sobrevalorização cambial causada pelo referido plano econômico, fez com que o Brasil passasse a apresentar sistematicamente saldos negativos em sua balança comercial e uma crescente vulnerabilidade externa.
Entre 1990 e 1994, o superávit alcançou US$ 60,4 bilhões, ao passo que, entre 1995 e 2000, o déficit somou US$ 24,3 bilhões. Além disso, não houve nenhum avanço na composição das nossas exportações, as quais continuaram a apresentar, no início deste século, praticamente os mesmos percentuais de produtos industrializados e primários que apresentavam na década de 80 (cerca de 70% de produtos industrializados e 30% de produtos primários). Só houve algum avanço em anos recentes, graças, exclusivamente, às exportações da Embraer.
No que tange ao Mercosul, projeto geopolítico de grande significado para o país, o governo FHC foi incapaz de impedir o seu quase naufrágio. Em sua origem, o Mercosul tinha um nítido sentido estratégico de cunho neo-estrutural. Tratava-se de criar um espaço econômico, social e político capaz de levar os países que compunham a integração regional a uma inserção mais firme e soberana na globalização. Porém o Mercosul, ao longo dos governos de Fernando Henrique Cardoso, perdeu essa dimensão estratégica inicial e concentrou-se exclusivamente na liberalização comercial, em detrimento da coordenação das políticas macroeconômicas, da conformação de políticas harmônicas de desenvolvimento econômico e tecnológico, da criação de fundos de desenvolvimento e da livre circulação de trabalhadores.
FHC, com sua política externa errática e errante, dada à ausência de um projeto nacional definido para além da mera abertura econômica e da "modernização" conservadora, foi incapaz de inverter tal processo e de recolocar o Mercosul em sua correta dimensão estratégica inicial.
Essa mesma política externa inconsistente resultou na incapacidade de apresentar alternativas à em seu atual formato. Embora o governo brasileiro anterior tenha feito reservas à Área de Livre Comércio das Américas, o fato concreto é que Fernando Henrique Cardoso foi incapaz de formular um projeto próprio de integração comercial, com prazos mais amplos e escopos mais reduzidos e que promovesse a necessária proteção dos setores estratégicos nacionais e mantivesse a integridade geopolítica do Mercosul.
Ademais, o governo anterior, com toda a sua pomposa diplomacia presidencial, não soube defender, com o rigor imprescindível, os interesses de nossos exportadores nem se empenhou como deveria em construir as desejadas parcerias estratégicas com países emergentes, como China, Índia, África do Sul etc., concentrando-se fortemente nas relações assimétricas com os países desenvolvidos.
Apesar de toda a precariedade da política externa de FHC, os hoje neocríticos e outrora seguidores do doutor Pangloss continuaram a defendê-la. Mais do que isso: durante a campanha presidencial, o candidato oficial foi apresentado como o único capaz de mantê-la. Insinuavam, dessa forma, que Lula, por ser monoglota e por não pertencer, como FHC e Serra, à elite social e intelectual do país, não reunia as condições necessárias para poder bem representar o Brasil no exterior.
Pois bem, com apenas um mês de governo, o presidente Lula já é considerado unanimente um dos principais e mais respeitados líderes mundiais. No Sul em desenvolvimento, a sua envergadura política só encontra paralelo com a de Nelson Mandela. Fatos o demonstram. Lula foi o único presidente brasileiro eleito a ser recebido na Casa Branca, num encontro que resultou no estabelecimento de uma agenda ampla de negociação Brasil/EUA. Na América do Sul, o novo governo não hesitou em usar audaciosamente a influência brasileira na região para criar o Grupo de Amigos da Venezuela, instância de negociação que vem obtendo êxito em seu objetivo de solucionar a crise daquele país por via pacífica e constitucional.
Mas talvez o símbolo mais visível (certamente não o mais importante) da relevância política que o presidente Lula tem hoje no cenário mundial seja o convite que recebeu para participar do Fórum Econômico Mundial, em Davos. Na realidade, não foi o presidente Lula que foi a Davos, e sim Davos que foi até o presidente Lula. Os neoliberais de lá, bem mais inteligentes que os daqui, já estão conscientes de que a "modernização" efetuada conforme as diretrizes do Consenso de Washington gerou uma ordem mundial crescentemente desigual e mergulhou a maior parte dos países em desenvolvimento numa crise social e econômica sem paralelo. Eles sabem o perigo que isso representa. A "montanha mágica" precisava, portanto, de um Leon Naptha que criticasse a nova ordem e apontasse alternativas para uma "globalização solidária". O presidente Lula o fez com propriedade. E o fez não porque tivesse maior conhecimento de temas internacionais que FHC, mas sim porque, diferentemente dele, está respaldado num projeto de nação que dá consistência e legitimidade às suas ações no campo internacional. Significativamente, o presidente Lula, em Davos, falou antes do que pretende fazer no Brasil para depois apresentar as suas idéias referentes ao cenário mundial.
Lula, monoglota e oriundo da nossa "Índia", vem conseguindo conduzir uma autêntica diplomacia presidencial séria, congruente e de sucesso. Tudo isso em bom português. Como canta Caetano Veloso, "minha pátria é minha língua".


Aloizio Mercadante, 48, é economista e professor licenciado da PUC e da Unicamp, senador por São Paulo e secretário de Relações Internacionais do Partido dos Trabalhadores.



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