São Paulo, domingo, 09 de maio de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARTIGO

Economista não comprova transferência de recursos

MARCOS DE BARROS LISBOA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O professor Reinaldo Gonçalves já há alguns anos vem se dedicando a sistematizar indicadores econômicos básicos para analisar e comparar governos ou gestões da política econômica no Brasil. Uma das principais características de seus trabalhos é reunir um conjunto relativamente pequeno de indicadores econômicos básicos e um critério arbitrário para sua ponderação de modo a construir um índice sintético de avaliação da política econômica.
Trata-se de trabalhos originais na medida em que não se procura demonstrar, analítica ou empiricamente, os possíveis determinantes das diversas variáveis nem, ao menos, as possíveis inter-relações de causalidade existentes, ao contrário do que tradicionalmente ocorre nos trabalhos acadêmicos em economia aplicada.
Por exemplo, a análise acadêmica da evolução dos salários procura, em geral, identificar os fatores mais correlacionados com a distribuição salarial e em que medida pode ser estabelecida relação de causalidade entre esses fatores e os salários reais. Essa análise permite, em particular, identificar as políticas públicas mais eficazes para aumentar os salários reais.
Esse artigo de Gonçalves se diferencia da abordagem acadêmica usual e é característico dos seus trabalhos nos últimos anos. São escolhidas duas variáveis econômicas, salários e juros nominais, e construído um índice sintético da relação entre ambas nos últimos anos. Farei alguns comentários sobre a construção do índice posteriormente, que me parece apresentar alguns problemas para a análise pretendida.
O aspecto mais surpreendente do artigo é a inferência de causalidade proposta pelo professor Gonçalves com base na análise da evolução do índice juro/salário. Segundo ele, em diversos momentos, a análise desse índice permite inferir um processo de transferência de renda dos trabalhadores para os aplicadores de recursos financeiros. Não se oferece nenhuma demonstração da existência dessa relação de transferência de recursos.
Vamos considerar, por exemplo, o período que antecede março de 1987, em que houve um crescimento do salário superior ao dos juros. Será que é possível dizer que foi a queda dos juros que levou à alta dos salários ou ainda que a elevação dos salários resultou na queda dos juros?
Condições suficientes para que alguma das duas afirmações fosse verdadeira seria que a renda nacional fosse repartida apenas entre salários e juros e que, além disso, a renda nacional fosse determinada exogenamente, semelhante a um problema da divisão de um dado bolo em duas partes. O problema é que nenhuma das duas hipóteses é verdadeira. A renda nacional compõe-se, além de juros e salários, de diversas outras variáveis, como as transferências de renda realizadas por meio do governo e o lucro das empresas, por exemplo.
Variações do salário nominal podem decorrer, por exemplo, de variações cambiais ou de um aumento da participação do governo na economia, simultaneamente ao aumento das transferências públicas às famílias de baixa renda. Além disso, salários ou juros nominais podem variar concomitantemente com a renda nacional sem que ocorra nenhuma transferência de renda de um grupo para outro (deve-se observar que a análise de Gonçalves se dá com base nos salários e nos juros nominais, e não entre salários e juros reais nem ao menos entre a participação de cada grupo na renda nacional).
Por exemplo, um aumento de produtividade pode levar a um aumento dos salários e da renda nacional, independentemente de uma queda da taxa de juros. Nesse caso, há uma queda da relação juro/salário em decorrência do aumento dos salários. E esse aumento de forma nenhuma significa uma transferência de renda dos juros para os salários. Dessa forma, as conclusões propostas por Gonçalves parecem carecer de um trabalho analítico e empírico mais abrangente e cuidadoso de modo a corroborar as conclusões pretendidas.
As dificuldades com o trabalho de Gonçalves não me parecem se esgotar na implicação distributiva por ele proposta com base na evolução da série juro/salário. Acredito que haja problemas igualmente com a própria construção da série. A dívida brasileira, mesmo a doméstica, pode ser decomposta em duas componentes principais: uma parte com obrigações que dependem das taxas de juros e inflação apenas; outra que depende da variação da taxa de câmbio, além de juros.

Dívida e câmbio
A dívida doméstica indexada à taxa de câmbio chegou a 40% da dívida total em meados de 2002, revelando seu peso expressivo na dívida total. Pois bem, os custos com o serviço dessa dívida em reais incluem não apenas os juros em dólar pagos mas também a variação da taxa de câmbio. Se o câmbio se desvaloriza, o custo dessa dívida em reais aumenta, ainda que os juros tenham permanecido constantes. Alias, essa é uma das razões pelas quais as taxas de juros dos títulos indexados ao câmbio tendem a ser distintas das taxas dos demais títulos.
Do ponto de vista dos gastos públicos, do comprometimento da renda nacional com o serviço da dívida, o juro pago sobre papéis indexados é tão relevante quanto o custo decorrente da evolução da taxa de câmbio. Se o câmbio se valoriza, o custo dessa dívida cai, assim como o montante da renda racional a ser destinado aos detentores desses títulos. O impacto do pagamento de juros e da variação cambial sobre a dívida interna da união é apresentado na tabela nesta página, como proporção do PIB em cada ano.

Distinção
A implicação desses números é significativamente distinta da proposta pelo professor Gonçalves. Do ponto de vista nominal, excluindo o ano de 2000, tivemos em 2003 o menor comprometimento com pagamento do serviço da dívida desde 1999. Isso não obstante o grande crescimento da relação dívida/PIB entre 1999 e 2002. Descontada a inflação, o gasto com serviço da dívida interna da união em 2003 foi de 4,0% do PIB, enquanto em 2002 esse gasto foi de 2,6%.
A grande disparidade observada nos dados de 2002 entre juros nominais e reais decorre da elevação da taxa de inflação no segundo semestre de 2002, que reduziu simultaneamente o pagamento de juros reais e os salários reais; uma vez mais ao contrário da relação direta de transferência de renda proposta por Gonçalves entre taxa de juros e salários.
Sobretudo a elevação da inflação, independentemente do comportamento dos juros, tem um efeito negativo sobre o salário real. Por isso a prioridade no combate à inflação no primeiro semestre de 2003 como forma de evitar a continuação do processo de corrosão dos salários reais, que resultou na queda da inflação acumulada em 12 meses de mais de 17% no começo de 2003 para menos de 7% no começo de 2004.
Por fim, três comentários adicionais sobre taxas de juro no Brasil e rentabilidade do setor bancário. Muitos analistas supõem uma relação direta entre a taxa de juros básica do Banco Central (Selic) e as taxas de mercado, e daí a pressão para um comportamento mais agressivo do Banco Central. Entretanto, essa relação não é tão direta assim, como ilustra gráfico nesta página. Cada curva nesse gráfico apresenta, para um dado momento, as taxas de juros para períodos cada vez mais longos, sendo a taxa mais curta a Selic.
Observe-se que em janeiro de 2003 a elevação da inflação e as demais conseqüências da crise de 2002 fizeram com que as taxas mais longas fossem significativamente superiores à taxa de curto prazo. Com o ajuste fiscal e o combate eficaz da inflação, as taxas de juros de longo prazo caíram continuamente, mesmo no primeiro semestre de 2003, quando a Selic aumentou.
Dessa forma, o impacto da política econômica foi a redução contínua das taxas de juros de mercado, apesar do aumento da taxa Selic nos primeiros meses de 2003.
Em segundo lugar, deve-se ressaltar que as taxas de juros reais de mercado têm apresentado uma tendência de queda constante desde o começo de 2003 até o aumento da volatilidade das últimas semanas, como mostra o gráfico na página, observando-se em 2004 os menores juros reais dos últimos dez anos.
Por fim, um último comentário sobre a taxa de rentabilidade do setor bancário nos últimos anos. Com base nos dados do Banco Central, pode-se calcular a rentabilidade média dos 50 maiores bancos brasileiros sobre seu patrimônio líquido por trimestre nos últimos quatro anos. Esses dados podem ser consolidados ponderando-se o resultado de cada banco pelo seu ativo total. A rentabilidade média trimestral dos 50 maiores bancos tem estado sistematicamente abaixo dos 10% nesse período, com uma única exceção em um trimestre em 2002, quando atingiu 10,19%.
Além disso, na metade dos trimestres observados, a taxa de rentabilidade média foi inferior a 5,01%, e em um trimestre em 2001 a taxa foi significativamente negativa. Nos demais trimestres, a rentabilidade oscilou entre 5% e 10%.
Por fim, no último trimestre de 2003, a rentabilidade média foi de 9,17%. Dessa forma, a rentabilidade média dos 50 maiores bancos apresenta não apenas um comportamento diferente do apontado pelo professor Gonçalves como seu nível atual é bastante inferior ao apontado em seu texto. Provavelmente, essa diferença decorre da metodologia ou base de dados utilizada por Gonçalves, que não explicita os critérios para a geração dos seus resultados.
Parece-me que a análise desse tema poderia se beneficiar de uma maior detalhamento dos critérios e base de dados utilizados de modo que os problemas reais possam ser precisamente identificados e o resultado da análise possa efetivamente auxiliar no desenho da política pública.


Marcos de Barros Lisboa é secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda.

Texto Anterior: Cai participação dos salários no PIB em dez anos
Próximo Texto: Receita ortodoxa: Lula exige juro menor para manter meta
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.