São Paulo, Domingo, 09 de Maio de 1999
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OPINIÃO ECONÔMICA

A crise dos quinhentos anos

RUBENS RICUPERO

Ou "Quinhentos anos de crise". Era esse o nome que eu tinha querido dar a artigo que escrevi para "Rumos", revista da Comissão do 5º Centenário. Devido a problemas editoriais, quando o trabalho finalmente apareceu no segundo número, o nome havia sido mudado.
Retomo agora o título original, irresistível no momento. Como, de fato, permanecer indiferente ante o paradoxo de que, na véspera de completar meio milênio de história, o Brasil vive hipnotizado pelo escândalo do Banco Central, episódio grave, sem dúvida, mas, conforme indica a palavra, episódico, transitório?
Já lembrei, em ocasiões passadas, outra imagem igualmente irresistível. A de Fernand Braudel, que comparava os acontecimentos aos vaga-lumes da noite brasileira, pois, dizia, "brilham, mas não indicam o caminho". Assim como os demais seguidores da escola dos "Annales", Braudel não se interessava particularmente pelos acontecimentos, buscando o sentido da evolução e suas mudanças decisivas na longa duração, a "longue durée", única capaz de nos fazer compreender a história.
Quinhentos anos é duração para nenhum Braudel botar defeito. Mas como encontrar maneira de ligá-la ao episódio do Banco Central, da CPI? O jeito mais fácil é dizer que a longa duração não é outra coisa que a sucessão de acontecimentos que se encadeiam como causas e efeitos uns dos outros. Há, no entanto, algo a mais. O objetivo da investigação da CPI tem a ver com os porões e bastidores da desvalorização. Esta, por sua vez, não foi decisão autônoma, mas sim imposta pelos mercados externos. A única e genuína contribuição nacional foi a sequência de trapalhadas com que desnecessariamente se realizou a desvalorização da moeda, a começar pela fase dita da "banda diagonal endógena" (nome misterioso e também de poder encantatório irresistível), culminando na fase de queda livre.
Não é preciso recorrer a modismos recentes para identificar nessa imposição dos mercados mais uma manifestação de velho conhecido nosso, o "estrangulamento do setor externo", que se repete com certa monotonia ao longo da história econômica brasileira. Onde se pode discernir algo de novo foi no temor inicial (logo dissipado) de que o colapso monetário e financeiro do Brasil pudesse contribuir para desencadear problema sistêmico mundial, ao fazer a incerta balança da economia global inclinar-se perigosamente para a recessão.
Aqui se encontra a dimensão inédita: a de que um acontecimento brasileiro pudesse ser relevante para o mundo, pois o inverso, a nossa extrema dependência em relação ao resto do mundo, não é novidade nenhuma. Reduzida a seus termos essenciais, é essa, no fundo, a definição da globalização: tudo o que é global é relevante para o local; tudo o que é local tem alguma relevância para o global.
Errado seria deduzir daí que a causa de nossos males é não estarmos suficientemente inseridos no mundo globalizado. Ao contrário, nosso problema nunca foi o da falta de inserção, mas do tipo e qualidade dessa inserção: ser Cavalcanti ou cavalgado. A história brasileira se confunde efetivamente com a expansão do Ocidente e a integração da economia em escala planetária. O achamento do Brasil é episódio da primeira etapa dessa expansão, a do mercantilismo e da busca de produtos exóticos. Por mais de 30 anos não passamos de escala da carreira das Índias. É significativo que o nome que "pegou" nestas terras não tenha sido o da Vera ou Santa Cruz, mas o das mercadorias que deram início a nosso comércio ultramarino (o caso é quase único se excetuarmos talvez a Argentina, equivocadamente confundida com a origem da prata de Potosí).
Se o descobrimento é capítulo do mercantilismo, a Independência vai ser apêndice da Revolução Industrial e suas novas exigências comerciais: fim do monopólio das metrópoles, abertura dos portos. As taras gêmeas brasileiras da desigualdade e da injustiça são consequências diretas do tipo de inserção pela qual o país se articulou com a economia-mundo mediante o fornecimento de produtos tropicais -açúcar e café-, em sua totalidade destinados aos mercados externos. Foi justamente a perfeita inserção do Brasil no sistema mundial de comércio que tornou possível implantar e manter durante séculos entre nós a organização da produção em latifúndios (o "plantation-system") e a escravidão em larga escala.
Desse pecado original de inserção colonial decorrem os nossos dois flagelos crônicos. De um lado, a excessiva dependência e vulnerabilidade da economia em relação a choques externos, seja de fluxos financeiros (demais ou de menos), seja em matéria de oscilação de preços de produtos cuja demanda se encontra totalmente fora de nossas fronteiras. Em outras palavras, integração excessiva com o exterior em situação de inferioridade.
Do outro, a integração insuficiente com o interior, com o nosso mercado interno a completar, o espaço a povoar, os milhões de compatriotas à margem do mercado e da nação, nem produtores nem consumidores, muito menos cidadãos conscientes e participantes de país integrado. Insuficiente também em relação aos vizinhos regionais com os quais éramos proibidos de comerciar na época do "exclusivo" das metrópoles, não se dispondo por isso até hoje de rede aceitável de transportes, comunicações e contatos.
Romper essa dupla camisa-de-força, integrar a sociedade brasileira consigo própria, a fim de poder inseri-la no mundo a partir de posição igualitária, deve ser o critério definidor de qualquer projeto nacional. É a retomada da "construção interrompida" desse projeto que tem de ocupar o 5º Centenário, não a crônica deprimente das trapaças de um mercado financeiro que cada vez se degrada mais aos olhos da população, à medida que o degradam alguns de seus repulsivos operadores e incompetentes supervisores.


Rubens Ricupero, 62, secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro da Fazenda (governo Itamar Franco), é autor de "O Ponto Ótimo da Crise" (editora Revan). Escreve aos domingos nesta coluna.


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