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OPINIÃO ECONÔMICA
A crise dos quinhentos anos
RUBENS RICUPERO
Ou "Quinhentos anos de crise".
Era esse o nome que eu tinha querido dar a artigo que escrevi para
"Rumos", revista da Comissão do
5º Centenário. Devido a problemas
editoriais, quando o trabalho finalmente apareceu no segundo número, o nome havia sido mudado.
Retomo agora o título original,
irresistível no momento. Como, de
fato, permanecer indiferente ante o
paradoxo de que, na véspera de
completar meio milênio de história, o Brasil vive hipnotizado pelo
escândalo do Banco Central, episódio grave, sem dúvida, mas, conforme indica a palavra, episódico,
transitório?
Já lembrei, em ocasiões passadas,
outra imagem igualmente irresistível. A de Fernand Braudel, que
comparava os acontecimentos aos
vaga-lumes da noite brasileira,
pois, dizia, "brilham, mas não indicam o caminho". Assim como os
demais seguidores da escola dos
"Annales", Braudel não se interessava particularmente pelos acontecimentos, buscando o sentido da
evolução e suas mudanças decisivas na longa duração, a "longue
durée", única capaz de nos fazer
compreender a história.
Quinhentos anos é duração para
nenhum Braudel botar defeito.
Mas como encontrar maneira de ligá-la ao episódio do Banco Central, da CPI? O jeito mais fácil é dizer que a longa duração não é outra coisa que a sucessão de acontecimentos que se encadeiam como
causas e efeitos uns dos outros. Há,
no entanto, algo a mais. O objetivo
da investigação da CPI tem a ver
com os porões e bastidores da desvalorização. Esta, por sua vez, não
foi decisão autônoma, mas sim imposta pelos mercados externos. A
única e genuína contribuição nacional foi a sequência de trapalhadas com que desnecessariamente se
realizou a desvalorização da moeda, a começar pela fase dita da
"banda diagonal endógena" (nome misterioso e também de poder
encantatório irresistível), culminando na fase de queda livre.
Não é preciso recorrer a modismos recentes para identificar nessa
imposição dos mercados mais uma
manifestação de velho conhecido
nosso, o "estrangulamento do setor
externo", que se repete com certa
monotonia ao longo da história
econômica brasileira. Onde se pode
discernir algo de novo foi no temor
inicial (logo dissipado) de que o colapso monetário e financeiro do
Brasil pudesse contribuir para desencadear problema sistêmico
mundial, ao fazer a incerta balança da economia global inclinar-se
perigosamente para a recessão.
Aqui se encontra a dimensão inédita: a de que um acontecimento
brasileiro pudesse ser relevante para o mundo, pois o inverso, a nossa
extrema dependência em relação
ao resto do mundo, não é novidade
nenhuma. Reduzida a seus termos
essenciais, é essa, no fundo, a definição da globalização: tudo o que é
global é relevante para o local; tudo
o que é local tem alguma relevância para o global.
Errado seria deduzir daí que a
causa de nossos males é não estarmos suficientemente inseridos no
mundo globalizado. Ao contrário,
nosso problema nunca foi o da falta de inserção, mas do tipo e qualidade dessa inserção: ser Cavalcanti
ou cavalgado. A história brasileira
se confunde efetivamente com a expansão do Ocidente e a integração
da economia em escala planetária.
O achamento do Brasil é episódio
da primeira etapa dessa expansão,
a do mercantilismo e da busca de
produtos exóticos. Por mais de 30
anos não passamos de escala da
carreira das Índias. É significativo
que o nome que "pegou" nestas terras não tenha sido o da Vera ou
Santa Cruz, mas o das mercadorias
que deram início a nosso comércio
ultramarino (o caso é quase único
se excetuarmos talvez a Argentina,
equivocadamente confundida com
a origem da prata de Potosí).
Se o descobrimento é capítulo do
mercantilismo, a Independência
vai ser apêndice da Revolução Industrial e suas novas exigências comerciais: fim do monopólio das
metrópoles, abertura dos portos. As
taras gêmeas brasileiras da desigualdade e da injustiça são consequências diretas do tipo de inserção pela qual o país se articulou
com a economia-mundo mediante
o fornecimento de produtos tropicais -açúcar e café-, em sua totalidade destinados aos mercados
externos. Foi justamente a perfeita
inserção do Brasil no sistema mundial de comércio que tornou possível implantar e manter durante séculos entre nós a organização da
produção em latifúndios (o "plantation-system") e a escravidão em
larga escala.
Desse pecado original de inserção
colonial decorrem os nossos dois
flagelos crônicos. De um lado, a excessiva dependência e vulnerabilidade da economia em relação a
choques externos, seja de fluxos financeiros (demais ou de menos),
seja em matéria de oscilação de
preços de produtos cuja demanda
se encontra totalmente fora de nossas fronteiras. Em outras palavras,
integração excessiva com o exterior
em situação de inferioridade.
Do outro, a integração insuficiente com o interior, com o nosso
mercado interno a completar, o espaço a povoar, os milhões de compatriotas à margem do mercado e
da nação, nem produtores nem
consumidores, muito menos cidadãos conscientes e participantes de
país integrado. Insuficiente também em relação aos vizinhos regionais com os quais éramos proibidos
de comerciar na época do "exclusivo" das metrópoles, não se dispondo por isso até hoje de rede aceitável de transportes, comunicações e
contatos.
Romper essa dupla camisa-de-força, integrar a sociedade brasileira consigo própria, a fim de poder
inseri-la no mundo a partir de posição igualitária, deve ser o critério
definidor de qualquer projeto nacional. É a retomada da "construção interrompida" desse projeto
que tem de ocupar o 5º Centenário,
não a crônica deprimente das trapaças de um mercado financeiro
que cada vez se degrada mais aos
olhos da população, à medida que
o degradam alguns de seus repulsivos operadores e incompetentes supervisores.
Rubens Ricupero, 62, secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro da Fazenda (governo Itamar Franco), é autor de "O
Ponto Ótimo da Crise" (editora Revan). Escreve
aos domingos nesta coluna.
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