São Paulo, domingo, 09 de junho de 2002

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PERDAS E DANOS

Dívida será reestruturada em 2003, afirma Morris Goldstein

Calote virá com qualquer presidente, diz analista

DE WASHINGTON

As chances de o Brasil ser obrigado a "reprogramar" (um eufemismo para dar o calote) sua dívida em 2003 são de 70%, não importa quem seja o presidente eleito em outubro. A estimativa é de Morris Goldstein, especialista em mercados internacionais de capitais que durante 24 anos, de 1970 a 1994, trabalhou no FMI (Fundo Monetário Internacional).
A estimativa de Goldstein decorre do tamanho da dívida pública brasileira, comparada por ele a um "elefante na sala" que todos fingiram não ver. A relação entre a dívida externa e as exportações brasileiras atualmente é de 400% -inferior à da Argentina, que chega a 500%, mas ainda assim "enorme", afirma.
Segundo Goldstein, desde 1980, dos países que tinham uma relação de 400% entre suas dívidas externas e exportações, apenas um -o Chile- conseguiu reduzi-la a uma proporção razoável, de 200%, sem reestruturar sua dívida. "Meu coração espera que o Brasil escape, mas minha cabeça sugere outra coisa."
Nos últimos sete anos de sua passagem pelo FMI, Goldstein foi o número 2 do prestigiado Departamento de Pesquisa. De lá para cá, já como pesquisador do IIE (Institute for International Economics), o mais importante centro de pesquisa econômica de Washington, dedicou-se ao estudo das crises financeiras internacionais. Escreveu sete livros sobre o assunto e elaborou propostas para a reformulação da arquitetura financeira internacional.
(MARCIO AITH)

Folha - Nos últimos anos, o Brasil transformou-se num caso de sucesso para o FMI e para o Tesouro dos EUA. Adotou câmbio flexível, metas de inflação e obteve superávits primários elevados. Mas os mercados questionam a capacidade do país de honrar suas dívidas. O que aconteceu? É um problema novo ou a causa da turbulência atual já existia lá atrás e ninguém a via?
Morris Goldstein -
É uma combinação das duas coisas. O Brasil fez avanços importantes, adotou políticas cambial e monetária coerentes, tem uma política fiscal responsável. Superávits primários de 3,5% do PIB não são pouca coisa. Mas a situação do país é muito frágil. Os maiores problemas são excesso de dívida, externa e doméstica, e incerteza política. Obviamente, com risco-país a 1.200 pontos, fica claro que os mercados estão nervosos. Por quê? A relação entre a dívida externa e as exportações é de 400%, enorme. Não tão grande como a da Argentina (500%), mas ainda assim enorme. Desde 1980, dos países que tinham uma relação como essa, só um a reduziu para uma proporção razoável, de 200%, sem reestruturar sua dívida: o Chile.

Folha - O governo brasileiro prefere comparar a dívida externa ao PIB do país e insiste que o endividamento não é preocupante.
Goldstein -
Não é seguro nem acalma os mercados comparar a dívida ao PIB e dizer que essa relação é de só 44%. Essa comparação pressupõe que podemos transferir de alguma maneira recursos do resto da economia para as exportações, o que dá na mesma. O Brasil tem um setor exportador que representa apenas 10% do PIB, não é como a Ásia, onde, em alguns casos, as exportações chegam a 40%. No Brasil, a dívida interna também é grande. Só a dívida do governo é de 44% do PIB. Há US$ 30 bilhões em títulos denominados em dólar vencendo neste ano. Quando o real se desvaloriza, a dívida pública aumenta. Quando os juros sobem para interromper a desvalorização do câmbio, isso também causa um maior endividamento.

Folha - E o crescimento também está baixo.
Goldstein -
Também há problemas aí. O crescimento do PIB neste ano será de uns 2%. Em 2000, superou 4%. O crescimento é chave para a solução do problema, dado o peso da dívida. Com a taxa de câmbio muito alta, é preciso crescer, senão restará elevar ainda mais o superávit primário para estabilizar a proporção da dívida. O país ainda tem um déficit em conta corrente de 4%, e os investimentos diretos provavelmente serão metade dos de 2000 - cerca de US$ 17 bilhões, em vez de US$ 32 bilhões ou US$ 33 bilhões. As exportações não cresceram tanto desde 1998 e, desde 2000, não cresceram nada. Houve elevação do volume das exportações, mas os termos de comércio se deterioraram, o que significa que o valor das exportações é o mesmo. O programa de privatizações parece ter estancado. O governo atual ou o próximo estão dispostos a privatizar o Banco do Brasil ou a Petrobras? Provavelmente não. O endividamento externo é grande num período de grande aversão ao risco nos mercados de capital. Olhe o número de países que estão pagando "spreads" próximos de mil pontos-base: Argentina, Uruguai, Venezuela, Peru.

Folha - Uma recuperação econômica dos países industrializados poderá salvar a América Latina?
Goldstein -
Não é o que vejo. Os EUA estão contribuindo para a aversão ao risco com seus escândalos corporativos. As Bolsas norte-americanas estão paradas há dois anos. No resto do mundo, a situação está complicada. A economia japonesa continua uma bagunça, há problemas no Oriente Médio, o conflito Paquistão-Índia se agrava e o protecionismo norte-americano, que afeta especialmente o Brasil, se fortalece.

Folha - O Real ou o FMI fortaleceram o Brasil contra crises externas?
Goldstein -
Brasil, Argentina e Turquia tinham dívidas enormes no momento em que fecharam seus programas com o FMI. Com isso, há uma ameaça constante de crise mesmo se você agir de forma responsável. Mesmo se tudo caminhar bem, você só consegue se manter por um ou dois anos. Assim que você começa a receber notícias ruins, como choques de comércio ou problemas na Argentina, todo mundo começa a olhar para o cronograma de repagamentos do país. É automático.

Folha - Se a dívida existia quando se fez o acordo com o FMI e se ela só aumentou desde o início do governo FHC, como podemos dizer que o caso brasileiro é um sucesso?
Goldstein -
Bem, quando se fala em sucesso, olha-se para o básico: crescimento e inflação. A dívida não é um problema isolado. Mas, se existe uma dívida enorme, o problema é constante. Se essa dívida não é resolvida no acordo com o FMI, ela explode mais para a frente mesmo se o país fizer o resto com perfeição. É como o cara que herda uma dívida enorme no cartão de crédito e diz: "Vou mudar minha vida, vou reduzir gastos, virar um cidadão modelo". Ele usa todo o salário para pagar os juros do cartão. Mas sua mulher fica doente e, apesar de ter se comportado bem, quebra. No caso brasileiro, a doença se equipara à redução do investimento direto, à queda no crescimento.

Folha - E as incertezas políticas?
Goldstein -
São o segundo problema. Pergunta-se o que Lula vai fazer se ganhar as eleições. Talvez ele seja mais responsável do que as pessoas pensam, talvez menos, mas a dúvida existe. Mas a dívida é o problema central.

Folha - Qual a chance de o Brasil ter de "reprogramar" a dívida?
Goldstein -
Espero estar errado, mas acho que é de 70%. Olho os números e vejo que, apesar do câmbio flexível e de todos os outros avanços, é pouco provável que o Brasil consiga atravessar essa fase sem reestruturar a dívida.

Folha - A reprogramação viria ainda neste ano ou em 2003?
Goldstein -
Por causa das reservas brasileiras e do apoio que o Brasil tem em Washington, seria até o final de 2003. A situação passa a ficar complicada no final do próximo ano. Se as exportações brasileiras fossem de 25% do PIB, eu diria que a dívida não é um problema tão grande. Se o crescimento fosse de 4% e os investimentos diretos continuassem chegando ao Brasil na mesma proporção, também. Mas, da minha cadeira, vejo outra realidade.


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