São Paulo, domingo, 09 de junho de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARTIGO

Calotes globais contagiam Brasil

WALTER MOLANO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há rostos satisfeitos em Washington, de pessoas que acreditam em que o colapso da Argentina não contagiou os demais países da América Latina. O despertar não lhes será agradável. É verdade que a instabilidade nos índices do mercado de títulos de emergentes foi controlado benigna no período imediatamente posterior ao colapso argentino, mas há diversas explicações para o fenômeno.
Primeiro, o colapso argentino aconteceu em câmera lenta. A maioria dos investidores ajustou suas carteiras muito antes da moratória. Segundo, os bancos de investimento fizeram uma cirurgia cosmética considerável nos índices de títulos de mercados emergentes, a fim de diminuir a importância da quebra da Argentina. O peso dos títulos argentinos na composição dos índices foi reduzido em cerca de 90%, mitigando assim o impacto aparente do colapso. Terceiro, os administradores de fundos estavam à procura de maior diversificação depois do colapso da empresa energética norte-americana Enron.
As preocupações quanto às práticas contábeis nos EUA e a falta de confiança nas empresas norte-americanas forçaram os administradores de fundos de investimento a ampliar a diversificação, para reduzir os riscos. Portanto, a falta de contágio aparente não tem relação com medidas políticas tomadas pelo Tesouro dos EUA ou pelo FMI (Fundo Monetário Internacional). Ela se deve a eventos externos e à manipulação dos índices de títulos.
Outro ponto que fez com que Washington se congratulasse foi a crença em que não houve operações de resgate financeiro durante o governo Bush. Infelizmente, não é verdade. Em contraste com o período entre 1998 e 2000, quando as operações de resgate econômico se reduziram, os grandes pacotes de socorro voltaram a ocupar uma posição de destaque quando o novo governo assumiu. Argentina e Turquia foram resgatadas na metade de 2001. Brasil, Uruguai e Turquia receberam dinheiro depois do colapso argentino. Neste ano, Turquia, Paquistão e Uruguai receberam verbas.
O Uruguai recebeu fundos equivalentes a 25% de seu PIB (Produto Interno Bruto) em operações de resgate, depois que o sistema bancário do país começou a ser pressionado pelos problemas na Argentina. Os rapazes do Tesouro têm pouco para se orgulhar. Infelizmente, os problemas na América Latina estão prestes a se agravar, graças aos erros cometidos na condução da situação argentina.
O crédito para a América Latina está desaparecendo. De acordo com um relatório do BIS (Banco de Compensações Internacionais), a Argentina respondia por 13% dos passivos em moeda estrangeira na América Latina. Excluído o México, a participação se elevava para 20,3%. O crédito a empresas não-financeiras do setor privado argentino representava 28% das dívidas totais de empresas regionais, se excluído o total mexicano.
Os bancos internacionais reduziram sua exposição à Argentina depois de 1999, ano em que ela representava 26% das dividas totais, excluído o México. No entanto, ainda tinham um enorme volume de dinheiro na Argentina quando surgiu a crise. O comportamento deles é compreensível. Ninguém acreditava que a crise seria tão grave. Muitos dos empréstimos foram realizados a empresas argentinas de primeira linha, com proprietários estrangeiros e históricos impecáveis.
Quem poderia imaginar que o Tesouro dos EUA impediria que o FMI criasse um plano de recuperação para a Argentina, esperando forçar uma mudança política? Quem poderia imaginar que o país ficaria à deriva por mais de seis meses, despencando ao caos econômico, político e institucional? Quem poderia imaginar que as empresas estrangeiras exibiriam baixa tolerância ao sofrimento e abandonariam suas obrigações? Como resultado, a qualidade dessas obrigações se deteriorou seriamente.

Fuga de capitais
Até mesmo bancos com status de credores preferenciais tiveram de enfrentar um aumento na inadimplência. Como resultado, os bancos se viram forçados a aumentar suas provisões. No entanto, isso ocorreu no mesmo momento em que eles tomavam providências semelhantes quanto a problemas que enfrentam no mundo desenvolvido. A inadimplência entre as empresas dos EUA bateu um recorde em 2001, estimada em 4,09%, ante a marca prévia de 4,01% atingida em 1991. Empresas de primeira linha, tais como Enron, AT&T e IBM, passaram a ser examinadas em profundidade.
Dados os problemas nos países desenvolvidos e em desenvolvimento, as instituições financeiras não estavam dispostas a fornecer capital adicional a ser usado em provisões. Portanto, elas estão financiando o aumento de suas provisões contra a inadimplência por meio de uma redução em suas linhas de crédito a outros países latino-americanos.
Infelizmente, o maior perdedor é o Brasil. No final de 2001, o BIS estima que o Brasil respondia (excluído o México) por 40% das dívidas em moeda estrangeira da América Latina. Há rumores de que as instituições financeiras mundiais podem reduzir sua exposição ao Brasil entre 30% e 50%. A redução no crédito ocorre no momento em que a economia patina. No entanto, a falta de crédito será perceptível quando se encerrar o ciclo eleitoral. É provável que ganhe proeminência no segundo semestre do ano, quando as empresas brasileiras tentarem financiar algumas de suas obrigações externas.
Infelizmente, essa situação pode se agravar com o prolongamento da crise na Argentina. Os bancos estão constituindo provisões da ordem de 50% de seus empréstimos para a Argentina, e o nível pode subir. O crédito que restar para a região provavelmente será destinado ao México. Portanto, o colapso argentino causou um contágio real. Talvez por isso Washington tenha começado, na última semana, a mostrar interesse em pôr fim à crise argentina. Resta saber se é tarde demais para evitar que a economia saia dos trilhos em toda a região.


Walter Molano é economista-chefe da corretora BCP Securities nos EUA.


Tradução de Paulo Migliacci


Texto Anterior: Fundamentos estão frágeis, diz agência
Próximo Texto: Para economista de Lula, BC será autônomo
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.